Sobre impostos, racismo e um conselho de minha avó (comentário à entrevista de Fernanda Lima)

Como a essa altura todo mundo já sabe, a FIFA escolheu a apresentadora branca Fernanda Lima para ser mestre de cerimônias de um evento, no lugar da atriz negra Camila Pitanga. Essa escolha, que gerou acusações de racismo à entidade, foi tema de uma entrevista dada por Fernanda hoje.

Nela, a apresentadora disse não ter nada a ver com isso e procurou distanciar-se da polêmica sobre racismo dizendo coisas como “só porque eu sou branquinha?” e “pago meus impostos”.

Esta não é uma discussão sobre impostos nem muito menos sobre a situação fiscal de Fernanda Lima: é uma discussão sobre racismo.

Mas, já que ela tocou no assunto “impostos”, eu gostaria de fazer um breve desvio de rota antes de passar ao que realmente interessa.

Não sei como é em outros países, mas para mim está claro que nós brasileiros temos muito o que aprender sobre impostos, o que eles representam e significam.

Em primeiro lugar, precisamos aprender que “pagar impostos” não equivale a rezar um Pai Nosso e duas Ave Marias: não isenta de todo pecado e não livra de todo mal. Para a obtenção de benefícios espirituais, existe o pagamento do dízimo. Imposto é outra coisa.

Precisamos aprender também que pagar impostos não faz de ninguém uma pessoa moralmente imaculada. Pagar impostos é uma obrigação da vida em sociedade. Não é algo para se ter orgulho. Ao pagar seus impostos, você simplesmente não está cometendo o crime de sonegação fiscal – assim como, ao não matar ninguém, você apenas não está cometendo o crime de homicídio. Ninguém sai por aí batendo no peito e dizendo “nunca matei ninguém, hein!”, como se isso merecesse algum parabéns. Em compensação, estufamos o peito para dizer “pago meus impostos”, como se a não-sonegação de impostos fosse indicativa de força de caráter ou de uma alma superior.

Por fim, precisamos aprender que “pago meus impostos” não é argumento para nada. Vale lembrar que Descartes não disse “pago meus impostos, logo existo” nem Hamlet afirmou que “pagar ou não impostos, eis a questão”.  Podemos estabelecer como regra o seguinte: o pagamento ou não-pagamento de impostos não se coloca como argumento em discussões nas quais nosso contador não está interessado. O pagamento de impostos, afinal, é não apenas uma obrigação como também um fato banal e corriqueiro da vida, assim como lavar a louça e escovar os dentes. Usar o argumento “pago meus impostos” em uma discussão sobre racismo faz tanto sentido quanto usar o argumento “escovo os dentes todo dia” em uma discussão sobre políticas de redistribuição de renda.

E, já que não faz nenhum sentido mesmo, vamos logo ao que interessa.

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Minha avó costuma me dar um conselho-conceito dentro do qual se encaixam inúmeras coisas:

“Filhinha, faz tudo direitinho!”

Sempre gostei desse conselho justamente pela generalidade da fórmula: as coisas a serem feitas direitinho eram todas aquelas que meu superego assim determinasse.

(Por exemplo, é preciso pagar os impostos direitinho.)

Eu costumava pensar que fazer tudo direitinho seria suficiente – fazer as coisas direitinho era o que a vida exigia de mim.

Fazendo tudo direitinho, pensava eu, tudo ficaria bem.

Depois da leitura de certo livro, porém, passei a questionar o conselho de minha avó.

***

Em É Isto Um Homem?, Primo Levi conta como sobreviveu à sua estadia em um campo de concentração na Alemanha nazista.

Comecei a ler o livro imaginando que os momentos mais aterrorizantes seriam as descrições de execuções em câmaras de gás. Mas, como costuma acontecer em toda experiência de leitura digna desse nome, minha expectativa foi subvertida: o que mais me impressionou não foram os momentos em que pessoas eram mandadas explicitamente, diretamente para a morte, por assim dizer.

O que mais me chocou foi a descrição das pessoas que morriam no campo por doença e/ou exaustão, após quatro ou cinco meses de trabalho forçado – sem que fosse necessário enviá-las para o gás.

Para morrer no campo, você não precisava ter feito nada de errado: pelo contrário, bastava fazer tudo direitinho.

Se você fizesse tudo direitinho, isto é, se seguisse estritamente as regras impostas pelos alemães – comendo exatamente a ração de comida que lhe era destinada (em vez de roubar algum alimento a mais) e trabalhando com afinco todos os dias (em vez de enganar seu superior e se poupar) – você morreria em poucos meses. Os alemães criaram aquelas regras justamente para que seu correto cumprimento levasse à morte. Assim, bastava que os prisioneiros fizessem tudo direitinho – coisa que a imensa maioria fazia – para que morressem dentro de pouco tempo.

Sobreviveram apenas aqueles que conseguiram, em alguma medida, burlar o sistema.

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Calma, pessoal: eu não vou dizer que o mundo é governado por uma conspiração de nazistas malvados e que vamos todos morrer em cinco meses se continuarmos pagando impostos e escovando os dentes.

O que eu vou dizer é coisa muito pior – coisa que eu gostaria que pessoas brancas como eu se dispussem a ouvir e pensar a respeito.

Ao fazer tudo direitinho, sem mover um dedo para infligir qualquer mal a quem quer que seja, nós brancos somos beneficiários silenciosos de um sistema opressor que nos precede e, apesar de que não o queiramos, nos define.

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Quando eu era criança, trabalhava em minha casa uma empregada doméstica negra que tinha uma filha mais ou menos da minha idade.

Eu nunca fiz nada de mau para a filha da minha empregada. Assim como Fernanda Lima (e digo isso sem nenhuma ironia), eu sou uma fofa. Nem o rabo do gato eu puxava.

Só que a filha da empregada doméstica, negra e pobre, estudando numa escola de má qualidade e tendo que trabalhar também como empregada doméstica a partir dos 16 anos para complementar a renda da família, teve uma péssima formação escolar.

Enquanto isso, eu, a filha da professora de francês, branca e de classe média, estudando numa escola pra lá de razoável e trabalhando a partir dos 15 anos como professora de inglês apenas para ter uma experiência bacana e ganhar um dinheirinho só meu, tive uma formação escolar bastante boa.

Acho que ninguém estranhará se eu disser que a filha negra da empregada doméstica foi uma concorrente a menos para a filha branca da professora de francês no vestibular da USP.

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Em termos bem concretos, a negritude e a pobreza dela e de tantas outras meninas e meninos me beneficiaram enormemente – e isso apesar de eu nunca ter feito nenhuma maldade para nenhum deles.

Eu sempre fiz tudo direitinho, afinal.

O problema é que “fazer tudo direitinho”, no nosso mundo, é exatamente o que o mundo exige para o mundo permanecer exatamente do jeito que está.

Se continuarmos fazendo tudo direitinho, escovando os dentes, pagando impostos, aceitando convites da FIFA e passando no vestibular, passaremos os próximos duzentos anos sem que as futuras Camilas Pitangas sejam alçadas ao posto de estrelas internacionais – e, o que é muito mais grave, sem que as futuras filhas de empregadas domésticas consigam estudar em boas universidades.

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Claro que Fernanda Lima recebeu o convite da FIFA em função de seu próprio trabalho, esforço e mérito. Ninguém lhe está negando essa conquista. Da mesma forma, eu também passei no vestibular por trabalho, esforço e mérito meu.

O que não dá para desconsiderar sem uma boa dose de hipocrisia é o seguinte:

Nesse processo de sermos eleitas pela FIFA e pela FUVEST, tanto ela como eu recebemos uma bela ajudinha.

Essa ~bela ajudinha~ nos foi dada pelo racismo estrutural da sociedade brasileira, que eliminou centenas e milhares de possíveis concorrentes nossas sem que precisássemos, nem Fernanda nem eu, movermos uma palha para isso.

É um sistema perfeito: a gente apresenta o evento da FIFA, estuda na USP e ainda paga de boazinha (afinal – repito – nunca fizemos mal a ninguém!).

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Ao dizer que paga impostos, Fernanda Lima tentou se esquivar do assunto racismo.

Não posso dizer que não a entendo. Quando o assunto é racismo, nós brancos geralmente preferimos falar sobre impostos, sobre pobreza, sobre o julgamento do mensalão e sobre a morte da bezerra – tudo para não tocar no assunto tão incômodo com o qual morremos de medo de lidar. (Aliás, eu fiz exatamente isso, exatamente neste texto.)

Sem nunca tê-lo ouvido antes, Fernanda Lima mostrou ter compreendido bem a essência do conselho de minha avó. Sua entrevista poderia ser resumida assim:

“Pago meus impostos, sou uma cidadã, e agora querem me envolver em treta de racismo? Como assim, se fiz tudo direitinho?

Acontece que, no nosso mundo, uma pessoa branca que faz tudo direitinho é uma pessoa que não se descola da sua posição de opressora.

Minha avó que me perdoe, mas é preciso fazer tudo ao contrário.

1,7%

Você passa a vida tentando ser educada e simpática e razoável com todo mundo, na medida do possível. E passa a vida tentando escolher pessoas educadas e simpáticas e razoáveis – como atributos mínimos, critérios básicos – para se relacionar de volta.

E aí você percebe que – oh meu deus! –, mesmo sendo educada (certamente) e simpática (um pouco) e razoável (talvez), há quem não goste de você. Ou melhor – não gostar é da vida, estou falando de coisa mais forte. Você percebe que há quem *desgoste ativamente* de você.

Então você se lembra de que:

Você é ateísta (e não ateia, porque ateia é uma palavra muito feia, apesar de que geleia, que rima com ateia, é uma palavra linda).

Você é contra Belo Monte, a favor do aumento do IPTU em bairros ricos (inclusive no seu), a favor de destruir a santa quando o Papa tá passando e a favor de cotas raciais em tudo quanto é canto.

Você é a favor da legalização de todas as drogas ilícitas e a favor da popularização de todos os relacionamentos moderninhos, apesar de não ser praticante nem de uma coisa nem de outra.

Você não comemora a prisão do Zé Dirceu nem tampouco vai estourar aquela champanhe quando o Sarney morrer.

Você é a favor da legalização do aborto, é contra uva passa na comida e não acha graça em humor politicamente incorreto.

E você ainda estranha que alguém “ativamente desgoste” de você?

Pesquisas mostram que 98,3% dos brasileiros te excluiriam do Feissy, te bloqueariam no Tuíto e orariam toda noite pela salvação da sua alma, se apenas soubessem o tipo de pessoa que você é.

Então, bem – então você deixa de mimimi.

Então você cresce.

E lembra que a vida, a vida de verdade, acontece no 1,7%.

P.S. Post inspirado em – e plagiando um – e-mail do Paulo Candido (que, se você for do 1,7%, você provavelmente sabe quem é).

A fé na humanidade

Quatro mulheres de classe média alta e trinta e muitos anos, almoçando juntas e conversando animadamente – quer dizer, praticamente um séquissendessíre versão Herbert Richards.

Hora da sobremesa, chega o garçom com quatro sundaes gigantescos.

Todas abrem o maior sorriso e uma até bate palma.

Cada qual começa a atacar o seu respectivo sundae. Elas, que até então falavam sobre os filhos, agora estão mais empenhadas em elogiar a doçura do sorvete e a cremosidade do chantilly (prioridades).

Algumas pessoas renovam sua fé na humanidade ao ver o Batkid ou celebridades usando “máscaras de Amarildo”.

Já eu acho que a humanidade ainda tem salvação quando vejo quatro mulheres tomando sorvete juntas, sem culpa e sem calorias, sem treino de barriga e sem dieta para o próximo verão.

Precisamos ouvir sobre sexo

Escrevi ontem mais um post sobre “revenge porn” (não gosto desse nome, mas ele tem a considerável vantagem de ser mais curto do que “fotos e vídeos íntimos compartilhados sem a autorização da mulher”). A frase mais importante do meu post de ontem é:

“Eu não tenho contato atualmente com nenhum adolescente sequer.”

Em todos os textos que li sobre esse assunto – a começar pelos meus -, não vi até agora ninguém que se dispusesse a, de fato (ênfase no “de fato”), ouvir o que os adolescentes têm a dizer a respeito.

Em compensação, um comentário comum é:

“Por que as meninas se submetem a esse tipo de coisa? Não sabem que estão correndo um risco ao expor sua intimidade para as câmeras? Por que, afinal, essa moda agora de filmar e fotografar a transa? Na minha época, não tinha nada disso! Será que essas moças não sabem que ‘suas vidas podem ser destruídas’? Não sabem que correr esse risco não vale a pena?”

Em primeiro lugar, eu diria que propagar a ideia de que “vidas são (ou podem ser) destruídas” é marcar um gol contra: é reforçar a ideia de que o revenge porn é algo tão mas tão humilhante – e que uma imagem de uma moça transando tem tanto mas tanto poder de destruição -, que frente a esse terror todo o suicídio torna-se uma alternativa, se não desejável, pelo menos plausível.

Em segundo lugar, entendo perfeitamente que você não queira se deixar filmar ou fotografar durante o sexo: em se tratando de relações sexuais, esta é uma possibilidade tão legítima (e potencialmente prazerosa) quanto qualquer outra.

Mas, por favor, considere que sempre haverá quem queira. E querer é um desejo tão legítimo quanto não querer.

Considere, acima de tudo, que se estamos discutindo o caso de jovens mulheres que escolheram ter suas relações sexuais filmadas ou fotografadas [longo suspiro e pausa para uma maravilhosa citação]: não é sobre você que devemos falar. Não são os seus valores nem a sua época que estão em jogo. Não importam as suas práticas sexuais, os seus costumes, a sua opinião sobre o que é “de bom senso” e o que não é. Não adianta dizer que na sua época, quando você era adolescente, não era assim. As coisas mudaram e, fundamentalmente, o foco não é você. As mulheres que estão passando pela experiência de ter a própria intimidade exposta contra a sua vontade são ou adolescentes ou muito jovens. E é a experiência delas (e dos meninos também) que não estamos sabendo ouvir.

Estamos tão chocados que, por vezes, simplesmente balançamos a cabeça de um lado para o outro e dizemos: “esses jovens de hoje em dia fazem cada uma, tsc tsc”. Mas desde que o mundo é mundo, os “jovens de hoje em dia” fazem coisas que os jovens de outrora consideram estranhas e incompreensíveis – e graças a deus continuarão a fazê-las.

Se nós, os velhos jovens de outrora, quisermos realmente oferecer algum apoio aos jovens de hoje em dia, a primeira atitude a tomar não é sair dizendo o que eles devem ou não devem fazer. (Especialmente em se tratando de um assunto tão delicado quanto sexo! Você gostaria se lhe dissessem “olha, eu sei que você gosta de transar na posição X, mas você está errado: a posição Y é melhor pra você”? Então por que você acha que um adolescente gostaria de ouvir você dizer que a transa dele deve ser assim ou assado?)

A primeiríssima coisa a fazer é, simplesmente, ouvir.

Precisamos falar sobre sexo

Um minuto depois de publicar este post, confesso ter sentido uma vergonhinha: cá estou eu dizendo indignada que o machismo é feio, bobo e cabeça de melão *suspiros*. Eu não vou dizer que isso é intelectualmente raso porque ainda acho que é muito necessário – esse discurso pode parecer clichê para você que está me lendo e que lê pessoas modernetes da internet, mas no mundo lá fora, aquele mesmo onde Feliciano é presidente da Comissão de Direitos Humanos do Brasil, este discurso não só não é clichê como ainda é (tristemente) muito necessário.

Mas eu vou dizer, sim, que esse discurso é insuficiente.

Não cheguei a me arrepender de ter escrito o post, mas acho que me arrependeria se o deixasse parar por ali. É preciso continuar falando, conversando – mesmo que não se tenha (como é o meu caso agora) nenhuma ideia clara a respeito.

Eu não tenho contato atualmente com nenhum adolescente sequer; então, tudo o que vou escrever a seguir é pura especulação, com base em duas informações que me chamaram a atenção esses dias:

1) Campanhas anti-anorexia podem estimular a anorexia (o que não é nada surpreendente, se lembrarmos que o “diga não às drogas” estimula o consumo de drogas e que a gravidez na adolescência é muito mais comum entre adolescentes que foram criados em religiões ferrenhamente anti-sexo). As campanhas de saúde pública anti-anorexia costumam mostrar mulheres assustadoramente magras que morerram logo depois, numas de “se você virar anoréxica olha só o que vai acontecer”. E o ponto é que as meninas que já têm alguma predisposição a transtornos alimentares transformam aquela mulher num modelo a ser atingido, numa heroína romântica, num exemplo de determinação, superação e contestação dos padrões da sociedade. Ou seja: se a mensagem que se deseja passar é “anorexia leva à morte, não faça isso”, a mensagem efetivamente recebida é “ser anoréxica é ser rock star”.

2) O Paulo contou aqui no blog que já tem gente dizendo: “a moda agora é sair pelada na internet e depois se matar”.

Acho que não é preciso dizer que este tipo de comentário é dos mais deploráveis e asquerosos que já li na internet – e olha que já li muito comentário de portal na vida.

Mas o que é mais assustador nesse comentário é que ele pode, sim, comunicar uma verdade que talvez não estejamos preparados para ouvir.

Enquanto nos horrorizamos e escrevemos posts tipo “olha só o que aconteceu com essa menina cujo vídeo íntimo foi compartilhado, a menina se matou, pqp que sociedade machista horrorosa a nossa!”, a mensagem que queremos passar obviamente é “pqp que sociedade machista horrorosa a nossa”. Mas fico pensando se a mensagem que efetivamente está chegando para muitas meninas com a divulgação desses suicídios não é outra: talvez a mensagem que chega é que se matar é uma opção possível e válida num caso desses.

E outra: por mais que sempre tomemos o cuidado de dizer que o problema não são as fotos e vídeos em si, que dar vazão ao desejo é OK, o problema é o cara compartilhar os registros depois… Estamos tentando dizer isso, eu sei, mas será que a mensagem que chega, cada vez mais, não é outra? Será que não estamos comunicando que fotos e vídeos íntimos são, em si, tremendamente poderosos e perigosos – e, justamente por isso, “proibidos”, da mesma forma que “proibidas” são as drogas?

Com isso, fico pensando se o escarcéu que estamos armando com esses casos (escarcéu este absolutamente compreensível, claro: estamos todos horrorizados) não acaba transformando as tais fotos e vídeos íntimos em algo imenso e perigoso, quando deveríamos tentar transmitir a ideia de que são um fato comum e banal da vida (voltarei a este ponto mais adiante). Pensem nestas possibilidades:

– Será que fotografar a transa não virou ou está virando o novo transar sem camisinha – isto é, uma coisa que se sabe arriscada e perigosa e, por isso mesmo, extremamente atraente? Acho que a questão não é explicar para as meninas “veja bem, cuidado que o cara pode te ferrar depois”. Não, acho que é precisamente o contrário. Você acaba topando tirar as fotos justamente porque o cara pode trair sua confiança depois. Correr esse “risco” – por que não? – pode ser excitante.

– As fotos viram uma espécie de prova de amor e/ou de confiança. Será que um menino adolescente não se sentiria “traído”, de certa forma, se sua namorada se recusasse a se deixar fotografar por ele? “Como assim você não quer que eu te fotografe, você não confia em mim?” Será que esse tipo de chantagem emocional ocorre entre adolescentes? Como eu disse, não conheço nenhum adolescente, mas acho essa hipótese provável.

Agora chega a parte impossível do post: a parte do “mas e daí? o que fazer?”. E eu vou arriscar aqui duas ideias:

– Ninguém precisa ter estudado Freud para saber que nossa sociedade é narcisista num grau nunca antes visto na história deste mundo (beijo, Lula): somos todos caçadores de likes no Facebook, somos definidos pelas múltiplas aprovações e rejeições alheias. Tiramos foto de cada passo e cada sorriso das nossas crianças; foto do nosso “look do dia”; foto da nossa comida; foto dos nossos cachorros; foto dos nossos gatos; foto do show de rock; foto da missa; foto do funeral; e colocamos tudo isso no instagram. Por que é que justamente o sexo, uma atividade no mínimo tão importante quanto todas essas outras, iríamos deixar de fotografar e compartilhar? Fotos de gente transando, vale lembrar, serão cada vez mais a regra em nosso mundo. [Antes que alguém me acuse de “defender o opressor” ou qualquer besteira do tipo: sim, é claro que o homem que compartilha a foto íntima de uma mulher contra a vontade dela está errado e é um escroto. Não é isso que está em discussão. Apenas estou chamando a atenção para o fato de que ele não é um escroto criativo e original: ele é um escroto típico do nosso tempo.] Meu ponto é: em vez de contribuirmos para transformar fotos e vídeos íntimos em bichos de sete cabeças, precisamos começar a vê-los como o que realmente são: fotos toscas de instagram. Fotos não mais toscas e banais do que fotos de bolos de chocolate ou de gatinhos fofos. “Ah mas é sexo, né, então é diferente”. Sim, mas a necessidade do olhar do outro – seja para o seu bolo, seu gato ou sua performance sexual – é rigorosamente a mesma.

– Imagino que minha tese já tenha ficado clara: estamos contribuindo inadvertidamente para a fetichização de fotos e vídeos íntimos. É como se, hoje, a coisa mais depravada que se pudesse fazer durante o sexo fosse fotografar e ser fotografado. E, gente, por favor. Não me interessa combater esse fetiche em si – mas me interessa, sim, combater a ideia de que este seja ou tenha que ser o único e/ou principal fetiche. Eu não quero viver em um mundo em que a maior sacanagem que eu possa fazer durante o sexo seja tirar fotinha. O sexo, muito mais do que a zuêra, não tem limites. Existem infinitas possibilidades de práticas e delícias e maravilhas sexuais a se descobrir e realizar, e um adolescente está apenas começando a explorar este universo.

– Eu acho, em suma, que um dos caminhos possíveis é falar mais sobre sexo. Com mais gosto e mais vontade. Mais biscatagem e mais zuêra. Sexo, afinal, não é uma coisa para ser levada assim tão a sério. Lembro de uma entrevista em que o baterista T. S. Monk se queixava da seriedade e da sisudez de jovens músicos preocupados em “resgatar a tradição do jazz” e coisas assim. Ele disse algo que nunca esqueci: “olha, eu vou dizer o que é um assunto sério – a guerra é um assunto sério. Quando estou tocando, eu quero é me divertir”. E é isso. É tão isso. Sexo não é para ser “encarado com responsabilidade”. Vamos deixar a responsabilidade para a hora de pagar as contas, gente. Sexo é para desfrutar, gozar, se divertir e se apaixonar.

Tenho impressão de que esta é a mensagem tão simples – e tão difícil – que todos esses nossos posts de revolta não estão conseguindo comunicar.

* Post inspirado neste. Porque a coisa mais importante que a Mary W. já me ensinou é que é preciso, sempre, continuar a pensar.

Coisa de adulto

Como vivem os adultos? Essa é uma pergunta que, sem que eu a formulasse explicitamente, passei boa parte da minha infância tentando responder. O que é que os adultos fazem detrás das mesas abarrotadas dos escritórios e das portas fechadas dos quartos? Quantos mistérios haveriam de se esconder por entre pilhas de papéis, carimbos e post-its? Quantas coisas estranhas haveriam de acontecer no quarto dos meus pais quando eles mandavam eu ir dormir no quarto da minha avó?

Agora tenho mais de 30 anos e, já ouvi dizer, sou adulta.

E descobri que todas as coisas que eu achava que eram de adulto são de uma facilidade inenarrável, uma estupidez tremenda, uma simplicidade atroz.

Eu achava que a vida dos adultos consistia em atividades como namorar, trabalhar, cuidar da casa, do cachorro, do filho.

Não que eu estivesse propriamente errada. Os adultos realmente fazem tudo isso, é verdade. Eu mesma, inclusive, tirando a parte do filho e do cachorro, faço todas essas atividades.

O que eu não sabia é que elas não eram nada diferentes de tudo o que eu fazia aos cinco anos.

Consideremos as atividades de trabalhar e cuidar da casa:

Aos cinco anos, eu ia à escola todos os dias e já fazia lição de casa. No que isso é diferente do meu trabalho hoje? Só o que mudou é que, em vez de empilhar bloquinhos e recortar e colar figurinhas, eu hoje empilho, recorto e colo palavrinhas – mas, em essência, é tudo a mesma coisa.

Aos cinco anos, eu já arrumava o meu quarto. Hoje eu arrumo cerca de metade de uma casa inteira (a outra metade quem arruma é meu marido). Meia casa é aproximadamente o dobro de um quarto só, mas hoje eu tenho o dobro do tamanho que tinha aos cinco anos – nada mais justo que o tamanho do espaço a ser limpado tenha dobrado também. Ou seja: também aqui não mudou nada.

Trabalhar o dia inteiro, fazer almoço, lavar a louça, sofrer com os textos a serem escritos, morrer de culpa com os textos que não foram lidos: tudo isso, qualquer criança de cinco anos faz (basta ela já ter uns vinte ou trinta anos nas costas).

O que nunca me contaram é que ser adulto é coisa muito diferente disso tudo e não tem a ver com o que os adultos dizem que fazem. (Os adultos, acima de tudo, mentem.) Os adultos, a se fiar no que eles próprios contam, acordam cedo, trabalham, brigam com o chefe, assistem novela, reclamam no tuíter e vão dormir. Mas nada disso contém a essência do que é um ser humano adulto formado e completo.

Um ser humano adulto formado e completo faz e resolve coisas que combinam determinados substantivos e determinados verbos:

– recibo, darf, declaração, cadastro, inventário, formulário, retificação, rubrica, visto, imposto, via, firma, nota fiscal, nota fiscal paulista; 

– preencher, assinar, datar, autenticar, arquivar, estornar, documentar, dar baixa.

Ainda não entendi muito bem em que consistem essas coisas de adulto, mas já deu para perceber que elas geralmente envolvem estes substantivos e estes verbos, quase sempre no futuro do gerúndio. Por exemplo:

O adulto vai estar preenchendo a retificação do visto.

O adulto vai estar dando baixa no cadastro da nota fiscal paulista.

O adulto vai estar assinando o formulário da rubrica.

Sempre que vejo anúncios prometendo amores perdidos em poucos dias, pênis gigantescos em poucas pílulas ou um inglês perfeito em poucas semanas, suspiro de impaciência: até hoje, nunca vi o único anúncio que certamente incitaria meu clique imediato:

RESOLVO COISA DE ADULTO EM TRÊS HORAS 

É o que eu mais queria na vida. Não um milhão em barras de ouro, uma barriguinha sarada ou uma casa no campo do tamanho ideal: apenas alguém que resolvesse coisas de adulto para mim, só isso.

Mas, ao que parece, é mais fácil realizar o sonho de ter um milhão de casas de ouro ou uma barriga do tamanho ideal do que resolver coisa de adulto.

Então, sigo com minha agradabilíssima vida de criança – lendo texto, escrevendo blog, escrevendo tese – tudo para adiar o terrível instante de encarar as coisas de adulto, que pelo menos têm o mérito de desnudar toda a minha impotência e insignificância no mundo. 

Algumas pessoas combatem o próprio narcisismo olhando para o céu e pensando que são apenas um pontinho irrelevante no universo.

Consigo o mesmo efeito contemplando um cartório ou uma agência bancária.

O problema mesmo é o machismo

O que as pessoas não entendem é que sempre se dá um jeito de botar a culpa na mulher. Se transou, é porque deu, então é puta; se não transou, é porque não quis dar, então é histérica. De qualquer forma, é culpada.

***

Quando eu tinha 17 anos, comecei a receber e-mails me chamando de puta, de vadia e algumas vezes até me ameaçando de morte – e, em anexo, fotos de gente transando. Não era eu nas fotos e nunca ficou comprovada a identidade do remetente, mas faço uma boa ideia de quem seja: um homem com quem não transei, e que ficou xatyado com essa minha recusa.

Esses e-mails e essas fotos me assombraram por anos, e foram enviados não apenas para mim como para várias colegas de faculdade (não sei se alguma delas se lembra disso – provavelmente não). Esse é o único assunto sobre o qual, em três anos de análise, não consegui falar. Cheguei a ir a uma delegacia com meu pai para prestar queixa. Não lembro exatamente o que o delegado disse, mas foi basicamente que 1) essas coisas de internet são difíceis de resolver; 2) eu deveria escolher melhor minhas companhias.

Repare que não era eu que estava nas fotos. E ainda assim. Ainda. Assim. Eu me sentia culpada. Era uma culpa difusa, sem objeto preciso (culpada do quê? de não ter escolhido bem minhas companhias? de mexer com essas coisas de internet, que são difíceis? de não ter transado com aquele homem? de ter transado com outros homens em vez daquele? ou talvez – oh meu deus – de sequer pensar em sexo? as possibilidades eram infinitas.)

Mais de dez anos depois, leio sobre uma moça que se matou depois que fotos dela fazendo sexo foram compartilhadas sem a sua autorização.

Eu não sei nada sobre essa moça, mas posso imaginar algumas coisas.

Imagino que ela tenha ouvido que não há mesmo muito o que fazer com essas coisas que acontecem na internet.

Imagino que ela tenha recebido o sábio conselho de se relacionar com pessoas melhores.

Imagino que ela tenha sentido uma imensa e transbordante culpa.

Imagino que ela tenha se perguntado o que fez de errado – e, na dúvida, talvez ela tenha imaginado que, de errado, ela fez absolutamente tudo.

Sobretudo, imagino que ela não tenha se dado conta do seguinte:

Que a questão não é que ela transou.

A questão é que ela é uma MULHER que transou.

E, em sendo mulher, sempre haverá um exército de gente se sentindo absolutamente no direito (para não dizer no dever) de julgar a sua vida sexual.

(Note-se que, quando uma história envolve o julgamento da vida sexual de uma mulher, o autor é sempre Kafka: a condenação é sempre certa.)

Eu não sei o que fazer, de imediato e concreto, para impedir que novos suicídios como este aconteçam.

Mas talvez fosse um bom começo considerarmos algumas coisas:

O problema não é que ela transou. O problema não é que ela tirou foto enquanto transou. O problema não é que o ex-namorado é louco e/ou mau-caráter e ELA deveria ter arrumado homem melhor. Em suma, o problema não é que ela estava usando minissaia, como costumam dizer em caso de estupro.

O problema mesmo é o machismo.

Uma salada

INGREDIENTES

A alface – Os nacionalistas que me perdoem, mas para esta salada tem que ser a americana, aquela que vem numa bolinha. Primeiro você ranca fora as folhas externas, que são ligeiramente mais escuras (são umas duas ou três folhonas), até aparecerem folhas-médias mais clarinhas e brilhantes. São essas que você vai comer. Lava, rasga com as mãos num tamanho que você considere adequado para a sua boca, escorre. Eu gosto de secar a alface numa centrífuga porque água pode servir para muita coisa, mas como tempero de salada é que não serve.

As ervilhas – Os pão-duros que me perdoem, mas para esta salada tem que ser aquela mais cara, a francesa. Economize na conta do celular, da internet, da TV a cabo, mas na ervilha não economize nada. Pois quando você compra a ervilha barata e abre a lata, invariavelmente metade dela contém apenas a alminha das ervilhas, aquela casquinha branca, e as ervilhas mesmo, em todo seu esplendor de bolinhas verdes, já foram desta para melhor (minha hipótese é que elas morrem e reencarnam na lata de ervilha cara). Uma vez comprada a ervilha superfaturada, você abre a lata e lava. Uma por uma?!, há de me perguntar o cozinheiro inexperiente. Não, companheiro, você apenas despeja um quarto da lata (ou até um pouquinho menos) numa peneira, e taca a peneira debaixo d’água por uns bons dez segundos, chuá chuá. Ao desligar a torneira, as ervilhas vão estar pingando e você vai estar estando com cara de bobo: e agora, o que faço com um bando de ervilhas pingantes? Então você faz o seguinte: equilibra a peneira em cima dum copo e enquanto isso vai cuidar da vida, quer dizer, da sua salada, que enquanto isso toda a água aderida às ervilhas há de encontrar seu caminho até o copo.

O palmito – sua avó lhe ensinou o truque, não? O palmito a gente compra aquele que estiver boiando. Dos palmitos-titanic você foge. Pega o palmito flutuante, lava (esse sim um por um), seca com papel-toalha (de preferência aquele do elefantinho, que é um luxo), e corta em, bem, pra mim um palmito rende umas nove rodelas. Pra essa salada é preciso um palmito e meio. Precisamente.

O alho-poró – a primeira providência a se tomar é jogar fora todo livro de receita e bloquear todo site de culinária que lhe diga que a parte escura do alho-poró não presta pra nada. Uma vez esconjuradas essas fontes de informação menos confiáveis que a própria Veja, você arranca um pedação da parte escura do alho-poró, e aí lava-lava-lava com o mesmo afinco que o ratinho do Castelo Rá-Tim-Bum lavava uma orelha e outra orelha, porque nessa parte do alho-poró costuma haver terra. Depois de lavar, você corta o pedação de alho-poró em várias tirinhas e as tirinhas você corta em quadradinhos. 

A salsinha – Imagina que o Ken vai dar um maço de flores enorme para a Barbie. É um buquê de salsinha mais ou menos do mesmo tamanho que você vai usar. Você vai lavá-la e depois picá-la sem grande obsessividade, apenas o suficiente para partir cada folhinha em dois ou três pedaços. E por favor, não jogue fora nem se preocupe se houver uns pedacinhos de cabo de salsinha na sua salada. Possível objeção 1: “salsinha não tem gosto, só serve pra deixar a comida verde” – eu não sei onde você aprendeu isso, mas nunca é tarde para aprender o seguinte: a salsinha, crua, é um dos maiores elementos de refrescância que uma salada pode ter. Possível objeção 2: “Ain credo como assim vou comer o cabinho da salsinha” – aqui só posso evocar o pai nordestino que diz para o filho choroso diante de um prato de miúdos de bode: “mas oxe, seje hómi”. Gente, por favor. Não é uma buchada, não é uma rabada, não é uma língua de boi. É apenas uma salsinha. Simplesmente sejem hómis e comam. 

O abacaxi – bom, obviamente só adianta incluir esse ingrediente se o abacaxi estiver doce. Será preciso uma fatia grande. Eu descarto o centro do abacaxi, porque não é com todo ingrediente que eu quero ser hómi – com abacaxi, recomendo ser mulherzinha mesmo. Este é um ingrediente essencial para compor com a salsinha no quesito refrescância.

O peito de peru – sem aquela casquinha demoníaca ao redor, por favor. Uma fatia só já basta. Rasga nuns sete ou oito pedaços que tá bom demais.

Sal, pimenta-do-reino moído na hora, azeite, aceto balsâmico.

MODO DE PREPARO

– A alface que você rasgou, espalha ela por todo o prato como quem espalha pétalas de rosa por uma cama de motel. Espalha de modo que não se veja o fundo do prato. 

– A ervilha que está lá na peneira, espalha por cima da alface. Não vá fazer uma pilha de ervilha no meio do prato, faz favor. Espalha direitinho, sem preguiça.

– Repete com os quadradinhos de alho-poró o que você acabou de fazer com a ervilha.

– Agora os abacaxis, vai espalhando também pelo prato todo. A esta altura sua salada já deve estar parecendo uma bandeira do Brasil estilizada, toda verde e amarela.

– A salsinha você espalha também pelo prato todo, mas tente mirar mais em cima dos abacaxis que do resto. Abacaxi e salsinha é uma combinação tão boa que merecia um nome tipo Romeu & Julieta só para eles. Por exemplo: Apolinário & Maria Flor.

– Aqui você pára e tempera tudo com sal e pimenta-do-reino. “Ué mas tá faltando ingrediente”. Sim, colega, mas você não quer salgar ainda mais o que já é salgado por natureza, não? Obedece a tia e tempera bem com sal e pimenta-do-reino neste ponto do processo, nem antes e nem depois.

– Agora sim você espalha os pedacinhos de peito de peru e as rodelas de palmito por todo o prato. Aproveite para dizer adeus à bandeira do Brasil.

– Pode começar a ficar empolgado que a sua salada já está quase pronta.

– Visualize uma espiral de uma volta só cujo centro está bem no meio do prato. Pegue o aceto balsâmico e trace sua espiral. A espiral toda deve durar não mais do que dois segundos e meio para ser traçada. Você não quer, repito, você definitivamente não quer uma salada carcada no vinagre. É só para dar um gostinho.

– Visualize uma pintura do Pollock, pegue o azeite e encarne o Pollok na sua salada por uns bons sete ou oito segundos. Você quer, repita comigo, você definitivamente quer uma salada carcada no azeite. E aqui vocês vão me perdoar mas eu usei um azeite especial que meu pai me trouxe da Itália e eu não sei dizer onde encontra esse tipo de azeite por aí – no Pão de Açúcar eu sei que não tem, talvez em mercado de rico vocês achem. É um azeite sabor manjericão, amigos. Desculpe.

– Agora você tira foto e põe no instagrão. Pode aplaudir se quiser.

– A parte de ser feliz comendo acho que não preciso explicar. 

– Vou explicar mesmo assim: tente fazer “garfadas perfeitas”, misturando todos os ingredientes numa garfada só; ou então faça garfadas semi-perfeitas, combinando o doce da ervilha ou do abacaxi com o salgadinho do palmito ou do peito de peru. 

– De preferência, faça esta salada para quem você ama. Amor e salada nunca hão de ser demais.

A academia

Faz tanto tempo que não vou à academia que cheguei a duvidar de sua própria existência. Teria ela se transformado em igreja evangélica, em cinema pornô, em bingo? Pior: e se ela ainda existisse? Como proceder? Meses atrás, eu andava na velocidade 6.7 – para não falar nos momentos de puro espírito olímpico em que, já sonhando com 2016, eu regulava a esteira para a inacreditável velocidade de 6.8. Mas e agora? Conseguiria ultrapassar a barreira do 6.0? Será que, mesmo andando em um bovino 5.5, teria de encarar uma temida dor no baço?

E mais – será que eu ainda sabia escolher músicas adequadas para a academia? Em um momento de descrença no meu condicionamento físico, enchi meu aipod de discos com “ballad” no título. E se as ballads me obrigassem a desacelerar para 5.0? Como encarar com dignidade as senhorinhas que correm a 7.2?

E mais ainda – antes, em outra vida, eu sabia exatamente quantas páginas era possível ler em vinte minutos de bicicleta. E agora? Quantos capítulos caberiam em uma falsa pedalada? O livro que estou lendo está no fim – seria ele suficiente para aqueles vinte minutos, ou eu o terminaria depois de quinze e passaria os últimos cinco olhando para o vazio e alucinando ouros brancos e sonhos de valsa?

Mas, pessoa admirável que sou, me enchi de coragem, segurei na mão do John Coltrane e do Antonio Prata e rumei para a academia. (Eu me programara para fazer apenas exercícios de pernas, para não precisar soltar a mão de nenhum deles.)

Cheguei ao lugar onde deveria estar a academia e resignadamente constatei que não havia ali nenhuma igreja pornô, cinema evangélico ou bingo: através dos vidros, todas as esteiras e bicicletas pareciam sorrir para mim, imponentes.

E desocupadas.

Afinal, hoje é feriado.