Cartas

Meu Facebook está cheio de fotos de viagem daquelas que a gente vê no Facebook dos outros e acha que eles é que sabem viver la vida loca enquanto nós, bem, nós estamos trancafiados no escritório vendo as fotos da vida loca alheia em vez de trabalhar.

Mas as melhores fotos – como, de resto, quase tudo o que importa na vida – não cabem em um Facebook.

As melhores fotos são de cartas enviadas por meus pais trinta ou mais anos atrás, a um amigo que me fez a gentileza de mostrá-las.

Sempre que ouço histórias sobre minha mãe, minhas orelhas empinam-se como as de um coelho. É esta a imagem que me veio, a do coelho alerta – visto que acredito em psicanálise, não por acaso. O coelho levanta as orelhas quando pressente a chegada de um predador (ou talvez não, mas isto é o que me ensinaram sobre coelhos e vou cometer este ato de fé contemporâneo que é acreditar-sem-guglar) – é o que sinto segundos antes de alguém começar a contar uma história qualquer sobre minha mãe.

Não sei o que virá. Tenho medo do que virá. O único jeito que encontrei de explicar esse medo é fazendo referência à tia Rosinha da primeira série. Quando você estava na primeira série, tia Rosinha era a autoridade máxima, a mulher mais linda e mais sábia do mundo, detentora da chave para todos os segredos do universo, sempre disposta a passar mertiolate nos seus machucados e pronta para responder se berin?ela é com jota ou com gê.

Aí um dia você está na oitava série e esbarra com a tia Rosinha no shopping (ela que era tão alta e agora parece tão baixinha!), toda atrapalhada porque perdeu o cartão do estacionamento, e é todo um mundo que se vai.

Quando minha mãe morreu, eu estava na quarta série. Ela já não era exatamente a tia Rosinha da escola, mas ainda estava longe de ser a tia Rosinha do shopping.

Começam as histórias sobre a minha mãe e eu fico na expectativa e no desejo de ouvir relatos que confirmem que minha mãe era mesmo a mãe-da-escola.

Mas fico também no receio – e igualmente no desejo, eis a maluquice – de que os relatos me digam, ao contrário, que ela não passava de uma amalucada mãe-de-shopping.

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As cartas me lembraram, em primeiro lugar, que muito mais importante e muito antes de ser minha mãe, Agar era uma mulher.

Surpreendentemente para mim e previsivelmente para outros, uma mulher muito mais parecida comigo do que com tia Rosinha.

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Aos vinte e poucos anos, Agar escreveu ao amigo dizendo que sentia saudade mas naquele momento não tinha dinheiro para viajar e encontrá-lo. Então, ela se corrige: não é que ela não estava ganhando dinheiro nenhum. Ela escolhera, isso sim, gastar o dinheiro que ganhara em outras coisas, que parecem tão importantes para quem vive em São Paulo – uma casa, um carro, algum conforto material, enfim – e que para ela, apesar de importantes, pareciam também tão idiotas perto do desejo de viajar, conhecer o mundo, ver os amigos.

(Tendemos a achar que nossos problemas e dilemas – os nossos, claro, nunca os dos outros –  são absolutamente únicos, singulares e demandam respostas originais, nas quais ninguém nunca pensou antes. Para curar essa ingenuidade, nada melhor do que as cartas que nossos pais escreveram. O mundo muda, os dilemas se repetem.)

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Quando uma pessoa morre ainda jovem, é comum e compreensível que, num primeiro momento, sua perda seja lamentada – principalmente por quem não lhe era tão próximo – por tudo aquilo que ela não teve tempo de fazer. (“Ficou sabendo de Fulana? – Não, o quê? – Morreu, coitada! – Morreu? – Tão jovem! – Deixou filhos, não? – Dois, menina, quero ver quem vai criar essas crianças agora.” Nesta conversa, raramente alguém diz que, enquanto viveu, Fulana foi excelente mãe para os filhos.)

Cabe àqueles que eram próximos da pessoa que morreu lembrar aquilo que ela efetivamente foi e fez – e aprender a conviver com a dor de imaginar o que poderia ter sido.

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A carta ao amigo poderia ser uma indicação de que, dali a dez anos, Agar, como tantos, trabalharia doze horas por dia secretamente sonhando com o momento mágico e impossível em que venderia tudo, colocaria uma mochila nas costas e sairia pelo mundo (mais ou menos como quem sonha em ter um caso extra-conjugal e não o faz – não por consideração ao cônjuge, mas por falta de coragem).

Dez anos depois, Agar morreu.

Mas, antes disso, ela teve tempo de viajar para a Europa quase todo ano. Ela ficava de um a dois meses por lá e me deixava com meu pai e avós. Quando eu já era mais grandinha, me levou com ela, e passamos um mês inteiro na França, entre Paris, Bordeaux e Lyon.

E, além disso, ela deu entrada em um apartamento pequeno mas bem localizado, de dois quartos, na zona norte de São Paulo.

É o apartamento onde moro hoje.

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Pensar que minha mãe fez tudo isso praticamente sozinha, com o dinheiro ganho dando aulas de francês, em plena Era Sarney, é algo que só agora, em que me aproximo da idade que ela tinha quando morreu, está me parecendo algo de extraordinário.

Porque ela conseguiu, entende? Ela conseguiu. Aos trinta e poucos anos, Agar conseguiu a vida que parecia um sonho tão distante na carta dos vinte e poucos. Ela conseguiu o tal do conforto material. Mais que isso, deixou boa parte deste conforto para a filha. Não sei como teria sido a minha vida se eu tivesse tido de pagar aluguel desde sempre – certamente, muito mais difícil do que foi até agora.

E o que é mais importante: ao mesmo tempo, ela conseguiu viajar. Conseguiu fazer coisas deliciosas que eram importantes apenas e exclusivamente para ela. É imensamente libertador saber que Agar viajava quase todo ano e deixava que outras pessoas cuidassem de mim (mesmo no ano em que me levou junto, ela ainda passou um mês sozinha na França depois). É libertador saber que ela teve a coragem de não renunciar ao seu desejo.

É libertador, inclusive, pensar em tudo isso para quando (se) eu mesma for mãe. Porque se for para ser mãe e não poder (não se permitir) passar um dia longe do filho – bem, essa mãe eu não tenho nenhuma vocação para ser. Mas, se for para ser uma mãe assim mais ou menos como a minha… Aí, talvez, quem sabe.

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Não é só que Agar conseguiu realizar os sonhos esboçados na carta dos vinte e poucos anos.

Ela conseguiu o que sua filha sonha para si mesma, hoje, tantos anos depois.

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É isso, gente. De repente, quis celebrar a vida da minha mãe. Quis que mais pessoas soubessem quem ela foi. Se você leu até aqui, então, só tenho a lhe agradecer. Obrigada, de verdade.

Melhores Discos de 2013

Vou disfarçar minha preguiça de escrever sobre música com fotos e links para alguns dos discos que mais gostei de ouvir em 2013. Eles estão em ordem crescente de preferência, que é para dar aquela emoção do and-the-winner-is:

12. Aaron Parks – Arborescence

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11. Bilal – A Love Surreal

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10. Laura Mvula – Sing to the Moon

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9. José James – No Beginning No End

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8. Gregory Porter – Liquid Spirit

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7. Snarky Puppy – Family Dinner, Vol. 1

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6. Tomasz Stanko – Wislawa

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5. Chris Potter – The Sirens

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4. Alexis Cuadrado – A Lorca Soundscape

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3. David Binney – Lifted Land

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2. Sting – The Last Ship

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1. Janelle Monáe – The Electric Lady

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Entro em férias amanhã \o/ Tchau por enquanto (mas vou voltar, sei que ainda vou).

Por que nos indignamos com os políticos corruptos mas não com as empresas corruptoras?

Tenho uma teoria de que as palavras que aprendemos durante a infância moldam nossa compreensão do mundo por muito mais tempo do que gostaríamos ou supomos.

De criança, por exemplo, aprendi que “corrupto” era o mesmo que ladrão – só que a gente chamava de “corruptos” os políticos, sendo os demais ladrões chamados apenas de ladrões mesmo. Para mim, “corrupção” era simplesmente “ladroagem”: assim como ladrões invadiam casas e roubavam tudo, da mesma forma agiam os políticos corruptos, que roubavam todas as riquezas do país. Meu conceito de corrupção era assim simples e puro: ninguém jamais me contou que, se havia um corrupto em algum lugar, haveria também um corruptor.

Além disso, aprendi que “corrupto” era um termo quase equivalente a “político” – na prática, as duas palavras podiam ser usadas intercambiavelmente. Compare: “os políticos gostam de aumentar os impostos” e “os corruptos gostam de aumentar os impostos”. Convenhamos, não há grande diferença entre a primeira e a segunda frase.

Para a menina que eu fui, o Brasil funcionava da seguinte forma: de um lado, havia os cidadãos produtivos, que trabalhavam, pagavam impostos, geravam riqueza e contribuíam com a sociedade de alguma forma. Do outro, os políticos corruptos que apenas se aproveitavam do trabalho dos outros, através da cobrança de impostos e da corrupção. Todos os cidadãos – desde o operário do chão-de-fábrica até o presidente da empresa – eram, em alguma medida, explorados pelos políticos corruptos. Pensando bem, era praticamente uma visão marxista do país: bastaria substituir “capitalistas” por “políticos” e “proletariado” por “restante da população” para se ter uma ideia do Brasil em que eu acreditava.

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Então você vai me dizer que esta é a visão de mundo de uma criança de 7 anos, e que ninguém pensa assim depois de adulto. Todo adulto, inclusive, já ouviu falar na lenda urbana do político honesto, aquele que continua morando em uma casinha simples depois de anos de vida pública (se bem que esse critério da casinha ficou um pouco ultrapassado depois que um político que morou a vida inteira num sobradinho do Butantã foi preso justamente por corrupção). Nós, adultos, somos espertos e sabemos que o mundo é mais complexo do que essa trama de novelinha das sete em que tudo se resume a polícia x ladrão, político x cidadão!…

Será que sabemos mesmo?

Se realmente estamos cientes de que políticos são corrompidos por megacorporações que pagam generosas propinas para maximizar seus lucros, eu gostaria de saber onde é que estão os posts no Feissy denunciando o SIEMENSalão. Onde estão os brados indignados com os ALSTrOMbadinhas. Tá certo que meus trocadilhos são horríveis, mas por que as mesmas mentes brilhantes que cunharam os epítetos “petralha” e “tucanalha” não fazem coisa parecida com a OGX e a Odebrecht? Por que pedimos o impeachment do Alckmin mas achamos natural que a Siemens, uma empresa declaradamente picareta, ainda mantenha contratos com o estado de São Paulo?

A verdade é que empresa não vira meme. Ninguém se dispõe a inventar xingamentos engraçadinhos com grandes corporações. A figura do político safado é imensamente mais popular e odiosa que a do empresário safado. Aliás, sugiro guglar as duas expressões: enquanto “político safado” é Maluf ou Sarney, “empresário safado” é tara sexual.

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Por falar no Doutor Paulo, parece-me que aplicamos uma de suas máximas às empresas de modo geral: “roubam mas fazem”. Empresas podem até cometer ilegalidades, mas, no final do dia, produzem coisas e geram empregos. Já os políticos, ninguém sabe direito o que fazem – eles apenas roubam, sem produzir nada que compense os danos infligidos à sociedade.

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O político safado é uma figura que amamos odiar porque ele representa um problema incrivelmente fácil de resolver. Basta que eles sejam substituídos – seja por derrota nas urnas, impeachment ou morte – para que, um dia – quando o mundo for dominado pelos bons e puros de coração –, tudo se resolva. Enquanto isso não acontece, a gente xinga bastante no tuíter, torce pela morte do Sarney e desopila o fígado – e repete tudo igualzinho no dia seguinte. 

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O problema de questionar a conduta das empresas corruptoras é que, uma vez que você começa, é impossível parar – e é impossível repetir tudo igualzinho no dia seguinte. Porque, num primeiro momento, você fica indignado com a Siemens e inventa trocadilhos infames. Depois, questiona se existem leis capazes de coibir crimes como os praticados por esta empresa. Então, questiona se existe alguma possibilidade de ética empresarial para além da ética do lucro. Enfim, questiona como seria viver em um mundo em que o bem público fosse um valor mais importante que os bens privados.

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Não acho errado nem ingênuo protestar contra políticos corruptos, muito pelo contrário. Longe de mim achar que devemos aliviar com partido algum – como, aliás, já acontece com o PSDB. Não é novidade para ninguém que, mesmo estando no centro de um escândalo muito mais grave do ponto de vista dos danos para o patrimônio público do que o mensalão, o PSDB continua pagando de partido honesto e bonzinho para gente que enche a boca para criticar (frequentemente com razão) o PT.

Acho apenas que não faria mal se, para cada xingamento de petralha, tucanalha ou equivalente que proferíssemos, nos obrigássemos a passar pelo menos uma hora pesquisando o papel da iniciativa privada nas mutretas em que os ditos petralhas ou tucanalhas estão envolvidos. 

Quem sabe assim conseguiremos debater não como crianças de 7 anos de idade, mas como crianças de 7 anos e meio. Já seria um grande avanço.