Comecei a assistir a House of Cards pelo mesmo motivo que todo mundo: porque somos cínicos e estamos acostumados a pensar que nós, que somos inteligentes, sabemos que há “algo a mais” ou “algo detrás” de toda notícia que sai no jornal, só não sabemos exatamente o quê, mas geralmente colocamos esse não-sei-quê-a-mais da notícia na conta de “disputas políticas” e ficamos nos achando muito inteligentes, os outros é que são manipulados pelo PIG, eu não, eu sou esperto demais para acreditar na notícia-manifesta, I can see the notícia-latente. Exemplo:
Notícia-manifesta: IPEA faz besteira.
Notícia-latente: isso é uma estratégia do PSDB para desviar nosso foco do cartel do metrô.
Vamos focar na forma e não no conteúdo do exemplo: o importante é que estamos sempre atrás da notícia-latente, e House of Cards nos oferece essa voyeurística oportunidade de ver o latente das notícias, o latente que é tão inapreensível na vida real mas que numa série de TV nos é entregue de bandeja, embrulhadinho para presente.
House of Cards existe em um mundo em que tudo é movido pela intencionalidade: a intencionalidade maquiavélica de meia dúzia de indivíduos inteligentes que comandam os milhões de boizinhos no pasto que, claro, somos eu e você. Tudo é planejado, previsível e, fundamentalmente, tudo sai de acordo com os planos: quando não, quando há um milimétrico desvio nos planos da gente maquiavélica, esse desvio é causado por algum erro de cálculo, porque o Maquiavelinho 1 subestimou a maquiavelice de Maquiavelinho 2, mas basta corrigir esta falha que logo tudo se resolve. Não existe acaso e, sobretudo, não existem instituições. Existem pessoas e seus interesses mesquinhos, e a política é apenas isto, a disputa entre esses interesses pessoais. Fundamentalmente, existe Kevin Spacey, e muito rapidamente aprendemos que, embora ele possa apanhar como Rocky em meio a alguma disputa, ele sempre sairá vitorioso no final.
(Só um exemplo para a coisa toda não ficar teórica demais: na water bill, é isso. Kevin Spacey tem tudo muito bem planejadinho desde o princípio, e a coisa toda só dá errado porque ele subestimou a maquiavelice – e o desejo, e o orgulho – da esposa. É tudo uma questão de vaidade, orgulho e desejo de poder, enfim. Tudo uma questão de interesses pessoais.)
E essa é narrativa é boa e é reconfortante e é fofa porque nos leva a crer que, poxa, se ao menos pudéssemos nos livrar dos Zé Dirceus da vida, aí sim poderíamos encontrar Uma Nova Forma de Fazer Política!…
(Para não correr o risco de ser mal-entendida: estou pensando aqui no Zé Dirceu pré-mensalão, ok? No homem forte fodão maquiavélico do governo, que se responsabiliza pelo trabalho sujo para que o presidente possa continuar a ser o boa-praça amado por todos.)
((Full disclaimer: assisti até o décimo-primeiro episódio da primeira temporada só, e bodeei. Bodeei bonito porque, veja, embora ninguém realmente queira ver a-vida-como-ela-é na televisão – pense que desagradável seria ver Sandra Bullock usando fralda geriátrica em Gravidade – todos temos um limite pessoal de suspensão da descrença. Sandra Bullock de cuequinha acho OK, acho sécssi; agora, Zé Dirceu himself matando Zé Mané com.as.próprias.fucking.mãos, sinto muito, minha gente: menos Hollywood e mais fralda geriátrica, por favor.))
Game of Thrones também é assim, meia dúzia de pessoas espertas manipulando a massa e uns aos outros o tempo todo. Com a diferença de que não há um Kevin Spacey, há vários, e não sabemos quem será o vencedor no final, o que torna tudo mais imprevisível e divertido. Além disso, Game of Thrones tem 1) Tyrion, que escapa a essa lógica 2) muito mais gente pelada.
Não sei o que acontece na segunda temporada de House of Cards (porque não vi e não sei se vou ver) nem o que acontece na quarta de Game of Thornes (porque ela mal começou), mas parece que ambas estão se encaminhando para o mesmo ponto:
O ponto em que os maquiavelinhos todos terão de superar suas diferenças, unir-se em um grande bloco e lutar contra um inimigo comum: os republicanos, no caso de House of Cards, e os zumbis, no caso de Game of Thornes.
E é aí, penso eu, que HoC pode se tornar muito mais divertido que GoT, porque não apenas republicanos >>> zumbis como também republicanos >>> gente pelada.
Pensando bem, acho que vou assistir à segunda temporada sim :-)
P.S. A magnífica
Mary disse que discorda de mim com relação a Game of Thrones – ela não acha que a série seja sobre maquiavelices. Pelo contrário (isso foi o que eu entendi do que ela disse, então pode estar tudo errado), ela acha que a série aponta para os limites da política, mostra como a política é ultrapassada pela vida. Aí eu respondi assim:
“Mary querida, esqueçamos o termo maquiavelices, por favor, que afinal – quem estamos tentando enganar – nunca li Maquiavel :-P O q eu quis dizer foi uma coisa muito mais simples. Que Game of Thrones é, de fato, sobre Game of Thrones. Sem pegadinhas. Sem “conteúdos latentes”. O tema da série é realmente um bandigente se estapeando e brigando pelo trono – como vc bem disse, ‘inebriando e sendo desejado e matando quem se inebriou’. Um bando de indivíduos cheio de desejos e vontades e ambições super mesquinhas. Indivíduos com agência. Que controlam outros indivíduos sem agência. E é claro que nada é tão pão-pão queijo-queijo e essas categorias mudam a toda hora, e aí é que tá a graça – quem parece poderoso e fodão num instante no outro se revela um bobinho manipulado etc. Mas é isso – é um seriado que mostra pessoas ativamente brigando por algo. E elas só são limitadas nessa briga pelo desejo de outras pessoas iguaizinhas a elas. A única coisa q pode impedir um Lannister qualquer de chegar a poder é um Stark, ou uma Daenyris (não sei como escreve) etc. Em suma. Volto pra primeira coisa q escrevi no meu textinho. Q GoT (e HoC também) são séries baseadas em *intencionalidades*. Não tem inconsciente ali. As pessoas não são sabotadas em suas intenções por burocracias, instituições – não são sabotadas nem mesmo (quase nunca, que me lembre) pelo acaso. Elas se sabotam mutuamente, claro. Mas é isso: fulaninhos brigando contra sicraninhos. Esse é o mundo que as duas séries retratam. Não sei se você vai continuar discordando… Mas eu tô falando menos de política que de visão de mundo mesmo (ueulxxtautung – não sei como escreve).”