Sabe quando você lê um texto, concorda com tudo, e fica com a estranha sensação de que não deveria ter concordado?
Aconteceu comigo hoje, com este texto. Por favor, leia-o – sem dúvida será uma experiência muito mais enriquecedora do que ler o resumo que farei dele a seguir.
O argumento do texto é basicamente o seguinte: enquanto alguns se incomodam com o chamado Fla x Flu eleitoral, o perigo mora mesmo é nos Milicos do Senhor F.C. (nome que, confesso, eu adoraria ter inventado), que se imiscuem no PT e no PSDB com suas ideias ultradireitistas e não têm coragem de fundar um partido próprio – e, por outro lado, nem PT e nem PSDB fizeram o favor de expulsá-los dos respectivos times até agora. Os Milicos do Senhor, socialmente conservadores (o que é apenas um termo bonito para designar racismo, homofobia etc.) e viúvos da ditadura, nada têm a ver com o que foram PT e PSDB em suas origens. O texto faz uso de uma metáfora biológica – o parasitismo – para descrever a relação entre os Milicos do Senhor e os dois grandes partidos. Os M do S seriam parasitas de PT e PSDB, que por sua vez se acomodaram na posição de hospedeiros. O texto, então, propõe que PT e PSDB rompam a aliança com o conservadorismo em respeito aos seus eleitores.
À parte uma nivelação um tanto quanto rasteira entre PT e PSDB, como se ambos fossem entidades simetricamente opostas (deslize que me parece completamente perdoável em um texto que não se propõe a tratar extensamente da história dos dois partidos), concordei com tudo após uma primeira leitura. Afinal, como não concordar? Tudo parece muito razoável e sensato. Qual eleitor do PT não preferiria que seu partido parasse de se engraçar com felicianos? Qual eleitor do PSDB não preferiria ver seu partido livre de coronéis telhada? Assim, teríamos um mundo ideal: haveria dois partidos razoáveis nos quais votar – um mais à esquerda, outro mais à direita –, livres dos malucos antigay e pró-ditadura. A eleição não seria motivo de angústia para ninguém.
O texto é mesmo um chamado à razão. Ele conclama os partidos, nobres (ou, no mínimo, não-podres) em suas origens, a parar de bater palma para urso ultradireitista dançar. “Podemos todos pôr a mão na consciência e separar o joio do trigo, por favor?” É isso o que o texto propõe, ao recomendar que PT e PSDB rejeitem os ultraconservadores.
Faz todo sentido, claro. É tudo muito racional.
Sabe o que mais é racional?
Legalizar as drogas e o aborto, por exemplo.
Se a política fosse baseada na racionalidade e no bem geral dos cidadãos, o comércio de drogas e a realização do aborto já teriam sido legalizados faz tempo, poupando milhares de vidas.
Para o bem e para o mal, a racionalidade não dá conta da política.
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É claro que teríamos um ambiente político muito melhor se PT e PSDB fossem partidos políticos livres de energúmenos antigay e pró-ditadura. Infelizmente, não vai acontecer. Nem o PT deixará de fazer concessões à bancada evangélica, nem o PSDB expulsará o deputado da cura gay. E por quê? Porque PT e PSDB não são organismos parasitados que simplesmente se acomodaram aos parasitas e são coniventes com eles, sem dispor da energia necessária para expulsá-los. O parasitismo não é a metáfora mais adequada neste caso. Para continuar no campo da biologia, teremos de recorrer à metáfora do mutualismo, relação em que as duas espécies se beneficiam mutuamente.
A relação entre PT e PSDB de um lado e Milicos do Senhor de outro só se mantém e se sustenta porque é extremamente vantajosa para ambas as partes (embora, claro, não seja vantajosa nem para mim nem para você, que gostaríamos de votar em algum partido que preste). O PT não vai parar de se engraçar com felicianos porque essa aliança lhe traz benefícios – e da mesma forma o PSDB com seus telhadas. Naturalmente, a aliança com esses partidos também traz amplas vantagens para os ultradireitistas. Em suma, todo mundo ganha: só quem perde é o Brasil.
Essa doce fantasia de separar o joio do trigo é apenas isso: uma fantasia que não encontra estofo na realidade. É fácil apontar os abusos e absurdos de figuras caricatas como Feliciano, Telhada ou Paulo Maluf. É mais difícil reconhecer que os interesses de PT e PSDB convergem com os dessas figuras em inúmeros aspectos. PT e PSDB são hoje partidos conservadores, de direita. É claro que muita gente (a começar pelo Coronel Telhada) vai discordar que o PT seja um partido de direita. A essas pessoas que discordam (e que não são o Coronel Telhada), eu pergunto: se convocar o Exército para conter manifestações populares e defender uma bizarra lei antiterrorismo não são ações políticas de direita, o que exatamente significaria “ser de direita”? Por favor, contem para mim, que eu tenho sincera curiosidade em descobrir o que mais um partido político precisa fazer para ser considerado de direita.
Ao dizer que o PT é hoje um partido de direita, não estou com isso querendo dizer que PT e PSDB é tudo igual, tudo a mesma coisa, tudo a mesma porcaria, PT = PSDB = Hitler = Stálin, etc. Como diz uma amiga minha, tentemos maneirar na burrice. A realidade, já dizia Paulo Mendes Campos, é louca e convém não desprezar jamais sua complexidade. Acho que, hoje em dia, ninguém sabe mais do que o paulistano o quanto é falacioso o discurso do “é tudo a mesma coisa”. Votar no PT, na cidade de São Paulo, fez sim toda a diferença do mundo.
O que não dá – o que é ingênuo demais – é achar que PT e PSDB irão simplesmente botar a mão na consciência e expulsar seus respectivos Milicos do Senhor apenas porque seria a coisa mais razoável a se fazer.
A razão não dá conta da política.
Para sair da metáfora biológica e retomar a metáfora futebolística – sim, todos adoraríamos desfrutar do belo espetáculo de um Fla x Flu. Infelizmente, não vai rolar. O que vai rolar – porque já vem rolando há muito tempo – é um Madureira x Olaria.
Esperar um Fla x Flu é o puro creme da ingenuidade.