Qual a sua relação com a música?

Querida A.,

Sabe quando as pessoas dizem que a música do Cantor A ou da Banda X é “a trilha sonora da minha vida”? Quer dizer – existe uma vida no centro de um palco, e uma musiquinha tocando lá atrás?

Comigo, é bem isso que acontece – só que exatamente ao contrário.

Houve uma época em que eu alternava dois discos no carro. Um de violão de aço solo e um de trio (guitarra, baixo, bateria) e voz. Eles sempre me pareceram discos-irmãos, ainda que distantes no tempo e no espaço – harmonias enganosamente simples, afinações diferentes, um sentimento de amplidão.

Havia esses dois discos, naquela época, e havia uma vidinha de fundo – no caso, a minha.

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Não entendo essa necessidade de um conceito de Deus (não o Deus-Barbudo, mas o Deus-que-está-em-todas-as-coisas) quando já existe a música.

Mas música não tem nada de etéreo e inefável. É concreta como um tijolo e excita o corpo – assim como comida e sexo. Você pode encontrar significados místicos variados em uma torta de chocolate ou uma transa, mas nos dois casos é o seu corpo que está ali, experimentando aquela maravilha toda.

E no entanto existem os pecados da gula e da luxúria, mas não existe o pecado de entregar-se languidamente à música sem comedimento ou moderação.

Eu decididamente não entendo as religiões.

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O único método confiável de estudo que desenvolvi além do tradicional “grifar e pôr estrelinha nas partes importantes” me foi ensinado por minha professora de piano, quando estudávamos peças a várias vozes. Ela me ensinou a colorir cada voz, para que eu as visualizasse separadamente e não partisse do pressuposto de que havia as vozes da mão esquerda e as vozes da mão direita.

Uma voz faz o caminho que ela própria dita, não o caminho mais conveniente para a minha mão.

E é colorindo que estudo qualquer coisa que me pareça importante. Identifico diferentes temas – vozes –, atribuo-lhes cores, e observo como eles conversam entre si, como se imbricam e passam de um parágrafo para o outro.

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Morrer deve ser um sofrimento por causa das pessoas que a gente deixa. Mas essa parte da morte pelo menos é democrática e não me parece particularmente injusta – atinge a todos igualmente.

Agora, quando penso que jamais ficarei sabendo da música produzida no século cento e vinte um, me sinto pessoalmente injustiçada e ofendida.

Que melodias serão produzidas no século cento e vinte um? Por quais homens, quais pássaros? Até quando homens e pássaros cantarão?

Por outro lado, quando penso que tenho acesso fácil a toda música gravada já produzida, me sinto agraciada por uma sorte injustificável e imerecida – então empatou.

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Tenho uma visão muito limitada da música. É uma visão basicamente horizontal, melódica. Sou ótima com melodias, tenho facilidade para aprendê-las e decorá-las – e uma dificuldade desalentadora com todo o resto.

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De criança, minha mãe me incentivava a prestar atenção a cada um dos instrumentos. “Agora canta o baixo”. “Agora canta a flauta.” “Agora o violão.” Mas ela nunca me ensinou a cantar a bateria, uma falha imperdoável na minha formação.

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Depois de velha, desenvolvi um respeito por hits de ídolos adolescentes que eu não tinha quando era o público-alvo desses ídolos. Talvez porque hoje eu entenda um pouco melhor o esforço, o trabalho, o gigantesco investimento que há por trás de cada hit.

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Tem esse vídeo fofo sobre meditação, em que um monge/mestre/guru bem-humorado diz que meditar é dar uma missão para o macaquinho mental que está o tempo todo pensando nas contas a pagar, no almoço a preparar, no capitalismo a derrubar, etc. Ao meditar, a missão que você dá ao macaquinho é: foque na respiração. Inspira, expira, inspir… “a fatura do cartão!”, EXPIRA, macaquinho, inspira, e assim vai.

Mas por que eu daria uma missão tão enfadonha para o meu macaquinho quando posso simplesmente pôr um disco para tocar?

Música é a missão preferida do meu macaquinho. Ele fica bem quietinho, impressionado, de olhos arregalados, e não se ocupa de mais nada enquanto a música durar.

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Eu não sei o que fazem os homens que se veem sozinhos no mundo com uma filha de dez anos. O meu me levava para ouvir música, pelo tempo em que vivemos juntos.

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Não sei se respondi à sua pergunta. Se você fosse winnicottiana, eu teria lhe respondido com o maior dos clichês – a música é meu Objeto Bom –, mas como graças a Deus você não é, tive de fazer como meus músicos preferidos e improvisar.

Um País Sério

Sim, eu sei, o Brasil e tal, mas permitam-me ser colonizada um minutinho –

Cês tão acompanhando os e-mails do Juninho?

Todo o governo Trump vem negando há meses a existência de qualquer tipo de coordenação entre a campanha trombística e o governo russo – “é tudo uma fantasia conspiratória de liberais recalcados floquinhos-de-neve-caviar”…

Aí, gente, o Juninho – filho do presidente.

Ele, o marido da Ivanka e o cara que coordenava a campanha se encontraram com uma advogada russa um ano atrás. Até aí, grandes coisas, qq tem, não pode mais ter amigo russo agora? Etc. Afinal, eles se encontraram para discutir um programa de adoção de criancinhas russas, poxa.

Pergunta daqui, pressiona dali, Juninho divulgou hoje os e-mails que levaram ao agendamento daquela reunião.

A linha de assunto do e-mail: “Russia – Clinton – particular e confidencial”

E segue o primeiro e-mail: “Migo Juninho, o governo russo apóia o seu pai e por isso quer compartilhar com vocês uns lances comprometedores da Hillary. Cê qué?”

A resposta dele, e eu não estou brincando, é praticamente aquele slogan imbecil do McDonalds – “amo muito tudo isso”.

O bom de acompanhar a política estadunidense é que isso nos permite rever a instituição País Sério.

Sabe quando a gente vê o deputado correndinho com a mala e pensa, num País Sério isso não aconteceria?

Clube das construtoras – num País Sério, algo já teria sido feito há muito tempo?

Reforma trabalhista escrota – num País Sério, isso aí nem pensar?

O País Sério, de Homens Competente, Honrados e Probos, certamente existe – apenas não neste século, nem nos anteriores, nem neste continente, nem em nenhum outro.

Alarme falso

Existem três teorias sobre a morte de Amelia Earhart.

(Se você não sabe quem é Amelia Earhart certamente não sabe quem é Joni Mitchell, portanto volte umas mil casinhas na vida e tome tento, por favor.)

Um: acidente do avião que ela pilotava.

Dois: ela foi capturada por japoneses que acharam que ela era espiã, e morreu na prisão. Um cara achou uma foto dia desses que parece dar sustentação a essa teoria.

Três: ela morreu numa ilha deserta onde seu avião caiu. Um outro cara vai levar uns border collies farejadores até essa ilha para tentarem achar uns restos de ossos dela. Se os ossos forem encontrados, teoria confirmada. Se não… Teoria não-refutada. Afinal, muita coisa pode ter acontecido com os tais ossos em oitenta anos.

Fiquei horas e horas angustiada com essas teorias e possibilidades. Para qual teoria eu deveria torcer? Qual morte seria a menos pior? Devo torcer contra ou a favor dos cães farejadores?

Torcemos por mil eventos futuros sobre os quais não temos nenhum controle, e sabemos disso, e tudo bem, porque pelo menos os eventos são futuros e podemos compará-los com a torcida ou palpite, os juros subiram, o Parmera perdeu, um imbecil foi eleito, e eu sempre, sempre posso ter uma ilusão íntima e não-dita de que foi a minha torcida (ou falta dela), no fundo, que fez toda a diferença.

Mas o que dizer da torcida por um evento passado?

Enquanto estou torcendo para que Amelia tenha morrido de um e não de dois, ela já morreu.