Diarinho da Tese

A tese foi pensada e escrita ao longo de quatro anos. Mas a reta final – os últimos quatro meses – não foram deste mundo. Foram quatro meses de

STOP

a vida parou

ou foi a tese?

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Eu simplesmente fui parando. Parei com a internet. Parei com o impijman. Parei de ir à academia. Parei de cozinhar. Parei de lavar a louça. Parei de sair de casa. Joguei tudo para o alto e segui em frente, meu marido e minha avó atrás de mim fazendo malabarismos para que nada se espatifasse no chão.

Nos últimos dois meses eu olhava para a caixinha de 300 cotonetes. Usamos 4 cotonetes por dia, 300 por 4 dá 75 dias. Tenho dois meses para entregar a tese. Eu tenho que entregar a tese antes que os cotonetes acabem. Quando a caixinha estiver vazia, terei terminado a tese. Terei terminado a tese?

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Eu tinha uma pilha de livros ordenada. Eu não tenho mais uma pilha de livros ordenada. Eles ficam espalhados pelo chão. Às vezes empurro a cadeira com rodinhas para trás e atropelo algum pobre livro. É triste.

Estamos na cena de um crime: o sangue derramado forma duas linhas paralelas no asfalto.

Agenor chamou o livro On Sublimation que está no chão do quarto de Os Saltimbancos. Tá certo.

Ocorre que, à medida que Freud desenvolve o que vai acontecendo com esse organismo vivo ou aparelho psíquico primitivo, a imbricação mútua entre interno e externo começa a aparecer, e o pressuposto do qual partiu desmorona.

Neste momento não estou trabalhando para terminar a tese, para aprender alguma coisa, para ser doutora, nada disso. Estou trabalhando para terminar a parte 2 da tese na sexta-feira e sair para comer um hambúrguer. E, se eu quiser, bolo de chocolate também. Claro que quererei.

A transação entre a cidade de Baltimore e Fatface Rick mostra a relação promíscua entre o tráfico de drogas e políticos locais, com a qual entramos em contato já na primeira temporada: em troca de doações eleitorais, os traficantes conseguem lucrativos negócios no ramo imobiliário.

Hoje interrompi o trabalho para pagar as contas de telefone, gás e internet. A conta de gás veio bem mais barata, já que não tenho cozinhado. Faltou a conta do IPVA. Essa deixei para pagar daqui a uns dias, porque daqui a uns dias certamente precisarei de um motivo para interromper o trabalho e entrar no site do banco.

A realidade é algo com que se estabelece uma relação: guardemos essa ideia. Guardemos também uma intuição: a de que o “mundo externo real” é uma instância simultantemente constituída pelo aparelho psíquico (afinal, o “mundo externo real” entendido como instância separada de Id, Eu e Super-eu é uma conquista do desenvolvimento psíquico) e constitutiva do aparelho psíquico (tanto quanto Id, Eu e Super-eu – afinal, o aparelho psíquico se desenvolve por meio de sua relação com o “mundo externo real” entendido como algo previamente existente ao surgimento do aparelho).

Estou fingindo que a revisora não me mandou e-mail e que preciso mandar tudo prontinho para ela antes do final do mês.

A “conquista de terreno” do princípio de realidade sobre o princípio de prazer é análoga à civilização que vai conquistando a natureza, cuidando para deixar uma parte dela intocada – o Yellowstone Park. Nessa nota de rodapé, Freud estabelece uma ponte entre aparelho psíquico individual e cultura. Com o estabelecimento do princípio de realidade sobre o princípio de prazer, a humanidade domina progressivamente a natureza, alterando-a de modo a satisfazer nela suas necessidades materiais: a agricultura provê alimentos para um número cada vez maior de pessoas, o desvio do curso dos rios e a construção de reservatórios provê água para regiões onde ela era escassa, e assim por diante.

Meu orientador virou meu contato número 1 no Gmail.

A dominação da natureza significa que a humanidade a toma não como imanência e sim como recurso: ela passa a servir aos propósitos que a humanidade determina. Em This Changes Everything (2014), Naomi Klein propõe que Francis Bacon pode ser considerado o “patrono” da dominação da natureza, à qual o filósofo se refere da seguinte forma: “Pois há que tão somente seguir e, por assim dizer, perseguir a natureza em seus desvios e será possível, no momento em que se queira, domá-la e depois reconduzi-la ao mesmo lugar.”

Estou trabalhando até as três, aí durmo até as oito, acordo, trabalho mais duas horas, durmo até o meio-dia, vou almoçar na casa da minha avó, volto para casa, continuo trabalhando e parando para tomar café e jogar o joguinho da corujinha.

Esse país outro que The Wire apresenta é produto do que Simon (Talbot, 2007) chama de “unencumbered capitalism”, isto é, “capitalismo desregulado”, não sujeito à regulação do Estado. O capitalismo – ou, mais precisamente, as instituições em um mundo sob a égide do capitalismo – é justamente o que “move as peças” do jogo (cf. p. 33 e segs.) apresentado por The Wire.

Mas parei de jogar paciência, sabe-se lá por quê.

A nota de rodapé em que Freud menciona o Yellowstone Park relaciona implicitamente os dois princípios de funcionamento do aparelho psíquico a um destino pulsional que talvez possamos chamar de sublimação. Quando fala em exploração dos recursos do solo que leva à riqueza de uma nação, está se referindo à constituição da cultura ou civilização; do progresso tecnológico e científico descrito em “Moral sexual ‘civilizada’” (Freud, 1908/1996), que só pôde ser atingido graças à supressão pulsional.

A tese por enquanto está assim: tem um prólogo. Uma primeira parte cujo esqueleto está prontinho. Uma segunda parte cujo esqueleto está prontinho e está sendo devidamente preenchida com músculos, sangue, gordurinhas. Uma terceira parte igualmente esquelética. E um epílogo que só existe na minha imaginação.

Sustento uma interpretação mais ampla da de Simon para o jogo. Como vimos, para ele o jogo nada mais é que o próprio capitalismo. Mas a obra ultrapassa a interpretação de seu autor: além de mostrar os efeitos do capitalismo, The Wire mostra o legado da segregação racial nos Estados Unidos e da escravidão, já que os efeitos do capitalismo sobre negros e brancos mostrado pela série é bastante diferente. No caso da população negra, essas consequências vêm se somar a uma forma de opressão preexistente.

Minhas unhas não existem.

A mensagem de Hamsterdam é clara: o capitalismo é bom e viável desde que regulado, moderado em suas intenções. Esse raciocínio é análogo ao de Freud ao tratar das pulsões sexuais e da necessidade de sua contenção, no âmbito do primeiro dualismo pulsional. O pressuposto nos dois casos (sistema econômico e sistema psíquico) é o mesmo: assim como a pulsão sexual, o capitalismo, se deixado livre para atingir seus fins, torna-se destrutivo e contrário à civilização. São necessárias rédeas para a pulsão sexual e para o capitalismo: é necessário domar o desejo de satisfação sexual imediata e o desejo de lucros ilimitados. Só assim, segundo Freud e também segundo Simon, se constrói a civilização.

O mais difícil é chegar a um formato adequado. As temporadas da série, as temporadas de Freud.

E, no entanto, sustentarei ao longo deste capítulo que The Wire não se limita a defender o argumento da necessidade de que o Estado regule o capitalismo – argumento este que casa tão bem com a primeira dualidade pulsional freudiana.

No fim de semana trabalhei enquanto Agenor via Star Wars na sala. É bom trabalhar com barulho de lutinha de fundo.

Defendo também que The Wire mostra mais do que isso: a série aponta que, além de satisfazer as pulsões sexuais humanas, o capitalismo também satisfaz pulsões de morte. Enquanto Simon interpreta o capitalismo no âmbito da primeira dualidade pulsional, sua obra vai além e oferece uma leitura do capitalismo condizente com a segunda dualidade pulsional freudiana.

Considerando-se que nesses últimos quatro anos Agenor assistiu às obras completas de David Simon comigo (The Wire do começo ao fim duas vezes, mais alguns episódios avulsos; Tremè; Generation Kill; Show Me a Hero; só faltou Homicide e The Corner, que vi sozinha), acho justo que ele escolha todos os filmes e séries pelos próximos quatro anos.

The Wire mostra, assim, o desenvolvimento do capitalismo através dos sucessivos líderes do tráfico de drogas. É importante ressaltar que se trata de um aperfeiçoamento do capitalismo, certamente não de sua crise. E esse desenvolvimento, para The Wire, tem um sentido bastante claro: é a história da progressiva desvalorização da vida humana.

Dei uma olhada no ombro do Agenor. Fui abraçá-lo e tenho o costume de me jogar em cima dele quando o abraço. Mas desta vez calculei mal e bati com o olho no ombro dele. Doeu. Dei uma olhada no ombro do Agenor.

A dominação de The Wire é aquela de que fala Bacon em relação à natureza (cf. p. 108), mas aplicada a corpos humanos: o outro (seja a terra, os rios, o petróleo – ou os corpos humanos, que não deixam de ser parte da natureza) é tratado como recurso a ser explorado.

O disco novo de piano solo do Fred Hersch é lindo.

Pulsão de morte em ação: a sublimação a partir de The Wire