O petista dos meus sonhos

Estou em busca de uma boa análise dos últimos dois anos de governo Dilma que seja francamente favorável ao governo. (Para os dois primeiros anos, há esta, excelente.)
 
A busca do Santo Graal começa a me parecer uma empreitada mais simples.
 
Sem muito sucesso em minha busca, comecei a imaginar um “petista dos sonhos”, um hipotético defensor do governo capaz de apresentar bons argumentos em sua defesa e também de rebater críticas pertinentes.
 
Assim se comportaria o petista dos meus sonhos, às vésperas da eleição:
 
1) Em primeiro lugar, o petista dos meus sonhos não partiria do pressuposto de que, por não pretender votar em Dilma, isso significa que odeio os pobres. Sim, existe um contingente considerável de pessoas inconformadas com o fato de que pobres agora têm telefone celular e frequentam aeroportos. Não, eu não sou uma delas. O petista dos meus sonhos saberia levar isso em consideração.
 
2) Em segundo lugar, o petista dos meus sonhos não me lembraria de dois em dois minutos quem são os outros candidatos à presidência da República. Eu já sei quem eles são, obrigada. Para isso, existem os jornais. Já estou sabendo que Aécio é candidato e inclusive já estou sabendo sobre o helicóptero também. Não é preciso insistir nesse ponto.
 
3) O petista dos meus sonhos elencaria as boas realizações e conquistas do governo Dilma. Elas certamente existem e ficam soterradas sob manchetes escandalosas do tipo “o PT destruiu a Petrobras”. Quais são elas? O Mais Médicos? O Minha Casa, Minha Vida? O Ciência Sem Fronteiras? O combate à seca no Nordeste? O trabalho de bastidores para garantir a aprovação do Marco Civil da Internet no Congresso? Eu quero e eu preciso saber o que o governo fez de bom. Isso sim eu preciso que um entusiasta do PT faça por mim, já que a imprensa certamente não o fará.
 
4) O petista dos meus sonhos, porém, não basearia a totalidade da sua defesa do governo no Bolsa Família e em avanços na distribuição de renda. Não porque estas não sejam conquistas importantes – ao contrário, não consigo pensar em nada melhor e mais importante que tenha acontecido no Brasil nos últimos vinte anos, juntamente com o controle da inflação e a estabilidade econômica -, mas são conquistas do governo Lula. Foi por elas que votei em Dilma em 2010. Entendo que seja importante e justo enfatizar que Dilma deu continuidade às políticas sociais de Lula, mas é preciso ir além na argumentação. Eu já sei o que é o Bolsa Família e conheço seus imensos benefícios – não é preciso me explicar que não se trata de Bolsa Vagabundo (vide ponto 1). 
 
5) O petista dos meus sonhos saberia ouvir calado um certo tipo de crítica: aquela relacionada à violação de direitos humanos. Para certas coisas, não há resposta possível. Não, o “crescimento econômico” e as “necessidades energéticas do país” não são boas respostas. Não se responde à violência – aquela praticada contra povos indígenas, por exemplo – com cifrões.
 
6) Em compensação, o petista dos meus sonhos saberia responder, em linguagem acessível para os não-iniciados, às críticas dirigidas à gestão da economia. Por que os analistas estão errados, por exemplo, quando apontam para os riscos da volta da inflação?
 
7) Mas, para responder a esse tipo de crítica – e qualquer outra, aliás – o petista dos meus sonhos não recorreria ao argumento “com FHC era pior”. Dizer que antes era pior, ainda que seja verdade, não é responder a uma crítica e sim fugir dela.
 
O petista dos meus sonhos, é claro, bem poderia ser uma entidade coletiva em vez de uma pessoa só. De qualquer forma, desconfio que o petista dos meus sonhos só existe nos meus sonhos e não na minha timeline por um motivo simples: porque eu não importo para os petistas da realidade. E não posso dizer que eles estejam errados: Dilma vai ganhar a eleição – provavelmente depois de um segundo turno ainda mais repleto de baixarias que o de 2010 – sem o meu voto e o de gente assemelhada a mim. Eu sei disso e os petistas da realidade sabem disso. Eles não precisam se adequar aos meus sonhos para ganhar a eleição. Eles precisam responder à oposição que efetivamente existe na cédula eleitoral – e a oposição que efetivamente existe (vide pontos 1 e 2) sabemos bem qual é.  
 
Eu, de minha parte, continuarei sonhando – não com petistas, mas com o surgimento (ou a consolidação) de uma oposição que seja digna desse nome.

Antônio

Na estação Luz, bem ali por onde passam as pessoas que vão da linha azul para a amarela e da CPTM para a linha azul, existe um homem.

Ele sorri e olha para o alto. Não vê nenhum de nós que transitamos pela estação. Seus olhos brilham de orgulho e esperança. 
 
(Para ser sincera, acho dificílimo definir objetivamente, plasticamente, um brilho no olhar. O que faz um olho brilhar? Não é uma pergunta retórica de supermercado querendo saber o que nos faz feliz. De verdade: o que faz com que um olho brilhe a ponto de que quem o olhe diga, “este olho reluz”? Não sei dizer, mas sei que Antônio – esqueci de dizer que o homem se chama Antônio – tem um imenso e incontestável brilho no olhar.)
 
Antônio sorri com a boca um pouco aberta e tem o olhar fixo em algum ponto não alcançado por nós, que vamos da linha azul para a amarela ou da CPTM para a linha azul.
 
Tudo bem: se Antônio não olha para nós, nós também quase não olhamos para Antônio – no que, aliás, fazemos muito bem. Antônio é apenas uma peça publicitária, apenas uma imagem trabalhada pelo mocinho do fotoxope. Teria o mocinho virado a noite ajustando o brilho daquele olhar? Ou teria dado um control cê control vê qualquer e voltado mais cedo para casa numa sexta-feira à tarde?
 
Seja como for, Antônio segue firme em seu orgulho e indiferente a nós que não paramos de passar. Seu orgulho é tipicamente paulista – a propaganda é do metrô, do governo ou da Sabesp, já não sei e não importa. 
 
É preciso reconhecer, porém, que o mocinho do fotoxope acertou: Antônio tem mesmo todo o jeito de locomotiva do Brasil.
 
Não por acaso, ao lado de Antônio está escrito:
 
GENTE QUE MOVE SÃO PAULO
 
Mas a frase poderia ser mais precisa:
 
GENTE QUE LOCOMOVE SÃO PAULO
 
Ou:
 
GENTE QUE, Ô LOCO, MOVE SÃO PAULO
 
Ou ainda:
 
GENTE QUE, LOUCA, MOVE SÃO PAULO
 
Mas essas são gracinhas que faço agora.
 
Quando passo por Antônio, ouço uma única frase:
 
(Ouço, de fato. Não se trata de alucinação visual e sim auditiva: vejo uma frase e escuto outra quando a leio para mim mesma:)
 
GENTE QUE MORRE EM SÃO PAULO
 
Sinto um calafrio e fujo de Antônio como se ele fosse não o produto finamente acabado do mocinho do fotoxope, mas uma obra de arte com propriedades místicas.
 
Quando passo por Antônio, tenho certeza de que seu olhar altivo transfigura-se em olhar de desprezo e volta-se para mim – afinal, não (loco)movo São Paulo.
 
Desço as escadas rolantes pelo lado esquerdo, pedindo licença suavemente a cada um que teima em não deixar a esquerda livre.
 
Quando chego na plataforma – ufa – já esqueci Antônio.
 
Volto a ser gente que (faz o que mesmo?) em São Paulo.

Nepentes

Aí que o mundo, assim, no geral, *não está colaborando*.

Aí que eu estava precisando muito ouvir música.
 
Então fiquei ouvindo em loop minha versão preferida de Prelude to a Kiss – que não, não é nem a do próprio Duke Ellington, nem a da Sarah Vaughan, nem a da Billie Holiday.
 
Minha versão preferida de Prelude to a Kiss é de um saxofonista chamado Dayna Stephens. Ele chamou a Becca Stevens para cantar e gravou uma versão que é a que mais me emociona. É uma interpretação tranquila, não dada a grandes arroubos, e é tudo tão bonito, a começar pela primeiríssima nota – ela canta, inicialmente desacompanhada, um longo “iiiiif”, e por um instante você tem a sensação de que esse “if” inicial não é voz, e sim um trompete com surdina.
 
Mas não tinha essa música no youtube (eu disse que o mundo não tem colaborado).
 
Só que enquanto eu a procurava, trombei com esta outra, do disco anterior do saxofonista – quem canta aqui é a Gretchen (sim, eu sei, kkk, hohoho) Parlato.
 
E esta outra música é quase tão linda quanto a que eu estava procurando. Só não é mais porque Prelude to a Kiss é uma composição inifinitamente superior a But Beautiful.
 
Foi assim que, de tanto ouvir música, fui me acalmando e fui me animando. Para a vida. De novo. Apesar da baixíssima colaboração do mundo em geral.
 
Então, navegando nas águas (agora um pouco mais tranquilas) da internet, descobri que o disco do Dayna Stephens que tem esta versão de But Beautiful chama-se That Nepenthetic Place.
 
No site do artista, está escrito assim: “A nepenthe is an elixir that relieves one’s worries and sorrows. In Homer’s Odyssey, the nepenthe is a potion given to Helen to cure her woe.”
 
No Houaiss, encontrei: “nepentes, substantivo masculino de dois números. Na Antiguidade, certa bebida com poderes para acabar com a tristeza.”
 
Quase sempre, ouço música não para atingir o estado de espírito A ou B. Ouço música para atingir o estado de espírito de quem está ouvindo música. Ouço música porque gosto de música.
 
Hoje, porém, não posso negar: a música me foi, de fato, nepentética.
 
Obrigada, Dayna Stephens e Gretchen Parlato.