Vovô-cama

Ontem meus primos e eu nos encontramos para jogar as cinzas do nosso avô no mar.

Não eram cinzas, na verdade. Eram uns pedregulhinhos de variados tons de cinza. Decidi que as pedrinhas-cinza-claro eram a parte do meu avô que a gente podia ver, e as pedrinhas-cinza-escuro eram tudo o que ia por dentro, órgãos, ossos, nervos, tudo o que fica por debaixo da pele. Como é bom ser de humanas.

A ideia era sair de lancha e jogar as cinzas-pedrinhas em alto mar.

Levamos para a lancha o potinho contendo um saquinho com aquilo que chamamos erroneamente de “as cinzas do vovô”. Aquelas cinzas nunca foram “do vovô”. Ele nunca as teve. As cinzas eram… Ele. Ao mesmo tempo que, claro, não eram. Restos do vovô? Vovô sublimado?

Mas a vida prática tem seu jeito maravilhoso de atravessar qualquer reflexão semântico-filosófica com suas questões tão bestas, tão essenciais. Como se joga as cinzas de alguém no mar? Jogaríamos as cinzas com potinho e tudo? Sem potinho, dentro do saquinho plástico? Só as cinzas e nada de saquinho ou potinho?

Um dos primos fez a excelente observação segundo a qual se nosso avô pediu para ser cremado e não enterrado, é que ele não queria ficar confinado em um espaço diminuto, portanto melhor seria tirá-lo do potinho, ainda que o crematório tivesse tido o cuidado de nos entregar as cinzas (… as cinzas? o vovô? as cinzas do vovô?… As reflexões semântico-filosóficas têm um jeito maravilhoso de se imiscuírem nas questões práticas mais bestas e essenciais) em um potinho biodegradável.

Foram meus primos que tiveram a ideia de jogar … … … no lugar onde meu avô gostava de pescar. Eu não fiz nada, não pensei em nada, só fui na onda deles.

Que onda.

Primeiro era só um compromisso na agenda. Acordar cedo, pegar estrada, lembrar de passar protetor solar.

Até que os primos todos se reúnem (a última vez foi quando? há uns cinco natais?), os primos todos entram no bote, levam um caldo, sobem na lancha, um dos primos dirige a lancha (atividade para mim tão inconcebível quanto tocar tuba ou fazer suspiro), e de repente não é mais um compromisso na agenda: de repente aquilo é um acontecimento.

Chegamos no lugar onde meu avô levava meus primos para pescar. Eu nunca ia. Ficava em casa lendo e fazendo palavras-cruzadas com a minha avó.

Cada um falou “umas palavras”.

Um primo disse que achava que a paixão dele pelo mar tinha vindo do vovô.

Comecei a chorar ali e acho que não parei até agora, apesar de que meu rosto está sequinho, sequinho.

Me senti bastante idiota dizendo a um pacotinho de pedregulhos: “obrigada por ter ido me buscar na escola”. Mas não era qualquer pacotinho de pedregulhos, não era qualquer dia e, principalmente, eu teria me sentido duas vezes mais idiota se não tivesse dito nada.

Passei bem mal. Enjoei loucamente. Pensei demais no Robinson Crusoe e no Gulliver, livros que li tão recentemente. Pensei na minha mãe, que não está no mar.

E pensei que não faz sentido nenhum dizer que alguém “partiu”. “Se foi”. “Deixou de existir.” Nada deixa de existir. Ninguém vai embora. A NASA ainda não inventou um método de jogar os restos mortais das pessoas no espaço sideral. Os mortos continuam aqui mesmo, neste mundo. Eles apenas não são mais o que um dia foram.

Meu avô nunca mais será meu avô, mas ele está lá, em Ubatuba. Cama para os peixes, ele virou.

Começou a Copa que já não teve

1. Já deixei claro que não considero o futebol uma coisa menor, coisa de alienado, coisa de coxinha, coisa de hómi besta correndo atrás da bola. Considero esses argumentos imbecis e toscos. Considero o futebol tão importante, por exemplo, quanto a literatura. O fato de que eu gosto de uma e não me importo com o outro diz algo sobre mim – não diz absolutamente nada sobre a importância relativa do futebol e da literatura.

2. Isto posto, eu não tenho cabeça para discutir literatura – ainda que seja a literatura que mais amo; ainda que sejam livros de Dostoiévski e de Guimarães Rosa – enquanto essa discussão está sendo garantida e possibilitada por bombas explodindo lá fora.

3. Sim, sempre haverá bombas lá fora – e, espera-se, sempre haverá literatura. Ocorre que, no presente caso, o Congresso Literário está sendo realizado às custas da integridade física de algumas pessoas – por mais que você insista em dizer que “uma coisa é uma coisa e outra coisa é outra coisa”.

4. “Mas eu tenho o direito de torcer pela Seleção Brasileira!” É claro que tem. NINGUÉM está tendo esse direito negado. Infelizmente, o mesmo não pode ser dito daqueles que têm o direito de protestar contra a realização da Copa da forma como ela se deu – nem daqueles que têm o direito de fazer greve por melhores salários.

5. Respeito seu direito de torcer pela Seleção Brasileira na mesma medida em que respeito seu direito de votar no Alckmin. Apenas, por favor, não conte comigo para isso. Não é tanto uma questão de convicção política quanto é uma questão de estômago.

Itens 6 e 7 que se fizeram tristemente necessários:

6. Releia o item anterior. Eu não disse que se você torce para a Seleção Brasileira você é eleitor do Alckmin. Eu também não disse que torcer para a Seleção Brasileira é um ato tão desprezível quanto votar no Alckmin.

7. Não estou lhe criticando por torcer pela Seleção Brasileira – não precisa se sentir ofendido. Este texto é para explicar por que EU não torço – o que, obviamente, não representa nenhuma superioridade moral de minha parte. Minha não-torcida indica apenas e simplesmente, reitero, uma fraqueza de estômago.

Um bando, correndo atrás

“Futebol é só um bando de homens correndo atrás de uma bola.”

Sim, e digo mais:

Literatura é só um bando de palavras correndo atrás de um sentido. 

Música é só um bando de sons correndo atrás de uma melodia.

Espaguete é só um bando de tubos de farinha correndo atrás de um molho.

Sexo é só um bando de partes anatômicas correndo atrás de um orgasmo.

Ativismo político é só um bando de ingênuos correndo atrás de um sonho.

O petista dos meus sonhos

Estou em busca de uma boa análise dos últimos dois anos de governo Dilma que seja francamente favorável ao governo. (Para os dois primeiros anos, há esta, excelente.)
 
A busca do Santo Graal começa a me parecer uma empreitada mais simples.
 
Sem muito sucesso em minha busca, comecei a imaginar um “petista dos sonhos”, um hipotético defensor do governo capaz de apresentar bons argumentos em sua defesa e também de rebater críticas pertinentes.
 
Assim se comportaria o petista dos meus sonhos, às vésperas da eleição:
 
1) Em primeiro lugar, o petista dos meus sonhos não partiria do pressuposto de que, por não pretender votar em Dilma, isso significa que odeio os pobres. Sim, existe um contingente considerável de pessoas inconformadas com o fato de que pobres agora têm telefone celular e frequentam aeroportos. Não, eu não sou uma delas. O petista dos meus sonhos saberia levar isso em consideração.
 
2) Em segundo lugar, o petista dos meus sonhos não me lembraria de dois em dois minutos quem são os outros candidatos à presidência da República. Eu já sei quem eles são, obrigada. Para isso, existem os jornais. Já estou sabendo que Aécio é candidato e inclusive já estou sabendo sobre o helicóptero também. Não é preciso insistir nesse ponto.
 
3) O petista dos meus sonhos elencaria as boas realizações e conquistas do governo Dilma. Elas certamente existem e ficam soterradas sob manchetes escandalosas do tipo “o PT destruiu a Petrobras”. Quais são elas? O Mais Médicos? O Minha Casa, Minha Vida? O Ciência Sem Fronteiras? O combate à seca no Nordeste? O trabalho de bastidores para garantir a aprovação do Marco Civil da Internet no Congresso? Eu quero e eu preciso saber o que o governo fez de bom. Isso sim eu preciso que um entusiasta do PT faça por mim, já que a imprensa certamente não o fará.
 
4) O petista dos meus sonhos, porém, não basearia a totalidade da sua defesa do governo no Bolsa Família e em avanços na distribuição de renda. Não porque estas não sejam conquistas importantes – ao contrário, não consigo pensar em nada melhor e mais importante que tenha acontecido no Brasil nos últimos vinte anos, juntamente com o controle da inflação e a estabilidade econômica -, mas são conquistas do governo Lula. Foi por elas que votei em Dilma em 2010. Entendo que seja importante e justo enfatizar que Dilma deu continuidade às políticas sociais de Lula, mas é preciso ir além na argumentação. Eu já sei o que é o Bolsa Família e conheço seus imensos benefícios – não é preciso me explicar que não se trata de Bolsa Vagabundo (vide ponto 1). 
 
5) O petista dos meus sonhos saberia ouvir calado um certo tipo de crítica: aquela relacionada à violação de direitos humanos. Para certas coisas, não há resposta possível. Não, o “crescimento econômico” e as “necessidades energéticas do país” não são boas respostas. Não se responde à violência – aquela praticada contra povos indígenas, por exemplo – com cifrões.
 
6) Em compensação, o petista dos meus sonhos saberia responder, em linguagem acessível para os não-iniciados, às críticas dirigidas à gestão da economia. Por que os analistas estão errados, por exemplo, quando apontam para os riscos da volta da inflação?
 
7) Mas, para responder a esse tipo de crítica – e qualquer outra, aliás – o petista dos meus sonhos não recorreria ao argumento “com FHC era pior”. Dizer que antes era pior, ainda que seja verdade, não é responder a uma crítica e sim fugir dela.
 
O petista dos meus sonhos, é claro, bem poderia ser uma entidade coletiva em vez de uma pessoa só. De qualquer forma, desconfio que o petista dos meus sonhos só existe nos meus sonhos e não na minha timeline por um motivo simples: porque eu não importo para os petistas da realidade. E não posso dizer que eles estejam errados: Dilma vai ganhar a eleição – provavelmente depois de um segundo turno ainda mais repleto de baixarias que o de 2010 – sem o meu voto e o de gente assemelhada a mim. Eu sei disso e os petistas da realidade sabem disso. Eles não precisam se adequar aos meus sonhos para ganhar a eleição. Eles precisam responder à oposição que efetivamente existe na cédula eleitoral – e a oposição que efetivamente existe (vide pontos 1 e 2) sabemos bem qual é.  
 
Eu, de minha parte, continuarei sonhando – não com petistas, mas com o surgimento (ou a consolidação) de uma oposição que seja digna desse nome.

#TodoApoioADanielAlves

Todo apoio a Daniel Alves.

Ele sofreu uma agressão, reagiu a ela e merece toda solidariedade.

Isto posto, é preciso lembrar que:

– Sua atitude não minimiza o horror da violência sofrida. Não é como se num passe de mágica a agressão desaparecesse e ficasse só a piada.

– Sua atitude não diminui a necessidade de que casos de racismo, no futebol e fora dele, sejam severamente punidos.

– Sua atitude não faz dele, nem de mim, nem de você, macacos. Não, não somos todos macacos – mas alguns de nós somos tratados como se fôssemos. Esse é o drama.

– Não faz nenhum sentido que nós, brancos, que nunca fomos tratados como macacos, de repente comecemos a agir como se corrêssemos esse risco.

– Em outras palavras: de nada adianta segurar uma banana no instagram, amigos brancos, quando nenhuma banana, real ou metafórica, jamais nos foi atirada na cara.

#TodoApoioADanielAlves

Admirações

Quem é a pessoa que você mais admira no mundo? 
 
Para muitos, a pessoa mais admirável do mundo é Um Grande Homem (eu poderia dizer Uma Grande Pessoa, mas a verdade é que a grande pessoa quase sempre é um homem) – um importante líder religioso, ator, cientista, político, escritor, atleta, cantor: Jesus Cristo, Ayrton Senna, Bono, Einstein, Pedro Bial. 
 
Para outros, a pessoa mais digna de admiração do mundo é Uma Pequena Grande Mulher (eu poderia dizer Uma Pequena Grande Pessoa, mas a verdade é que a pequena grande pessoa quase sempre é uma mulher) – uma mulher boa e honesta, querida e amada e que, fundamentalmente, soube cuidar: a mãe, a tia, a avó.
 
Já tive momentos de admirar um determinado pensador ou artista acima de tudo. Esses momentos têm sido cada vez menos frequentes.
 
Já tive momentos de admirar, acima de tudo, alguma mulher forte da família (e, na minha, são várias).
 
Ultimamente, porém, tenho reparado bem mais em pessoas que não são nem propriamente Grandes, nem muito menos da minha família.
 
Tenho admirado muito pessoas sobre as quais não sei quase nada, e nem preciso – o que sei, basta. O que sei: admiro. O que não sei: não importa.
 
Admiro profundamente Arthur, que, aos 13 anos, transexual, vai à escola todos os dias. (Na idade dele, eu não ia à escola todos os dias. Não conseguia. Não aguentava. Não dava conta – das outras crianças, das aulas estúpidas, das aulas de educação física. Eu faltava à escola pelo menos uma vez por semana. Mas não Arthur. Arthur coloca uma faixa no peito e vai.)
 
Admiro os pais e a bisavó de Arthur – sobre os quais, como eu disse, não sei nada, além de que, na hora em que foram convocados a isso, eles souberam e foram capazes, simplesmente, de amar.
 
Admiro a mãe de DG, que recusou um convite para encontrar-se com o governador do estado do Rio de Janeiro, depois de seu filho ter sido assassinado pelas forças deste mesmo estado.
 
Admiro Eliana Paiva, por ter sobrevivido.
 
Admira-me que estas pessoas existam. No mundo. Ao mesmo tempo que eu.
 
Além de admirá-las, sou-lhes grata.

Gabriel García Márquez e Luciano do Valle

Há umas semanas (meses? anos?), todo mundo estava alegremente fazendo listinha de livro no Feissy. Não lembro o que coloquei na minha, mas se não coloquei O Amor nos Tempos do Cólera, cumpre admitir que menti, blefei, esnobei e quis parecer o que não sou. Porque O Amor é com certeza um dos livros mais importantes e ricos que li, uma das poucas vezes que senti que o mundo inteiro podia caber dentro de umas tantas páginas. Acho que foi o primeiro que peguei depois de Cem Anos. Depois vieram outros. O Outono do Patriarca, Ninguém Escreve ao Coronel, Erêndira, Crônica de uma Morte Anunciada, Do Amor e Outros Demônios, Putas Tristes. Provavelmente algum outro que esqueci.

E, com isso – chega.
 
Gabriel García Márquez é talvez o único autor que realmente amei que, hoje, sinto que não tenho mais como ler – ou o que ler – ou por que ler. (Ops, mentira: Monteiro Lobato é outro. E Thomas Ogden, psicanalista, também – embora este eu ainda lerei por motivos de obrigação profissional, mas certamente não por amor). García Márquez morreu mas, como autor, há muito já não existia para mim. Já li, dele, tudo o que quis.
 
Meu amor por histórias, no entanto, permaneceu.
 
***
 
Em 1992, a programação da TV Bandeirantes era assim:
 
Segunda-feira à noite, campeonato carioca.
 
Terça, campeonato paulista.
 
Quarta, campeonato carioca de novo.
 
Quinta, vôlei masculino.
 
Sexta, boxe.
 
E como eu sei a programação da TV Bandeirantes de 1992?
 
Porque em 1992 a minha mãe morreu e eu morava com meu pai e tudo o que conseguíamos fazer, todas as noites, era ligar a TV no canal 13 e nos deixar embalar pela narração de Luciano do Valle, até dormir.
 
Eu era uma menininha que sabia tudo, tudo mesmo, de futebol. Escalação de todas as seleções brasileiras. Escalação de todos os times brasileiros daquele ano. E isso apesar de que eu não torcia por time nenhum. Afinal, não precisava. Eu só precisava mesmo era de ver os jogos.
 
Mais tarde, substituí esse afã esportivo por religião.
 
Hoje, o único jogador de futebol de que tenho notícia é o Neymar. E, claro, almocei hambúrguer na sexta-feira santa.
 
Ao contrário de García Márquez, não restou nada ou quase nada de Luciano do Valle em mim.
 
E, no entanto, se a morte de García Márquez não me provocou qualquer emoção, a morte de Luciano do Valle despertou em mim tanta coisa que… 
 
Não sei como explicar além de dizer que Luciano do Valle foi um homem que, sem ter a mais remota ideia disso, me pôs no colo e me fez dormir por semanas (meses? anos?) do período mais difícil da minha vida.
 
Adeus, Luciano, e obrigada.

Um Conto de Duas Sopas

Fiquei meio doentinha esses dias e, embora já esteja plenamente recuperada hoje, minha avó, mais amorosa impossível, fez questão de vir me trazer uma sopa – ao que lhe agradeci intensamente.

Ocorre que eu mesma tinha feito uma sopa ontem.
 
Foi inevitável comparar a minha com a dela.
 
O que eu mais temia aconteceu:
 
Minha sopa deu um pau na sopa da minha avó. Mas um pau.
 
Infinitamente melhor.
 
***
 
Esta parece ser apenas uma história insuportável de sucesso culinário e descaso com os mais velhos, mas na raelidade é uma história insuportável de luto da infância.
 
Existe uma única desvantagem em saber cozinhar, e a desvantagem é esta: perceber que muitas das comidas mágicas da sua infância são perfeitamente replicáveis por você mesma na vida adulta – frequentemente, com resultados muito melhores.
 
Pois, na infância, mágico não era apenas o sabor: era a própria aparição miraculosa da comida no prato. Um minuto você está brincando de cabaninha; no minuto seguinte, pimba – um prato de sopa! Vinda de onde, feita como? Você não sabia; você até podia suspeitar que o preparo da sopa transcorrera na cozinha, mas era impossível saber ao certo: o único fato incontestável era que a sopa, não mais que de repente, surgira à sua frente.
 
Referimo-nos à descoberta da não-existência de Papai Noel e do Coelhinho da Páscoa como dois marcos importantes da superação da infância (alguns incluiriam Deus nesta lista).
 
Parece-me que um marco muito mais importante é o dia em que você descobre como são feitas as sopas.
 
Afinal, o que é dar adeus a renas voadoras ou a um coelho falante perto de dar adeus a um prato de sopa que magicamente se materializa diante de você?
 
Mais importante ainda é o dia em que você descobre que a sua sopa de agorinha mesmo é melhor do que a melhor sopa da sua infância.
 
De repente, não existe mais aquele “ingrediente secreto” que sua avó usava. Existe uma hora de caldo de legumes em fogo baixo. Não existe “tempero misterioso”. Existe a paciência de lavar e picar três alhos-porós grandes em rodelas fininhas. Existe, enfim, trabalho e dedicação. 
 
Trabalho e dedicação estes que – você se dá conta – eram os tais ingredientes secretos e temperos misteriosos da sua avó.
 
E de repente você está fazendo sopa como ela.
 
De repente você está fazendo sopa melhor que ela.
 
(Fazer uma sopa melhor que a da sua avó, a grande cozinheira da família, é um pouco como matar os pais.)
 
Daqui a pouco ela está fazendo oitenta anos (e ainda está te fazendo sopa).
 
Você sabe que é impossível retribuir em igual medida tudo o que ela lhe fez. Que a única retribuição possível é passar adiante o que você ganhou em trabalho e dedicação, em amor e sopa.
 
Minha avó me criou para ser uma mulher que faz sopas melhores do que ela.
 
Não consigo pensar em um amor maior.

Não vai ter menino de 7 anos

A cunhada da colega de uma conhecida minha conhece uma moça. Essa moça tem um filho de 7 anos. O menino um dia teve um pesadelo, mas não quis contar para a mãe o que foi que ele sonhou. Disse que tinha que contar na igreja, no culto.

Lá vão eles ao culto e o pastor chama o menino para dar testemunho. Que nada mais é do que contar para todo mundo o que ele tinha sonhado. E o menino disse que Deus tinha mandado um recado para ele (aliás, dois): que ia acontecer uma coisa muito terrível no (ou com o?) Brasil depois da Copa; e que Deus iria levá-lo em 3 dias.

Dali a 3 dias – claro – o menino morreu.

“Morreu do quê, Claudia?” (Claudia é a pessoa que me contou a história.)

“De nada, morreu dormindo.”

Então agora todo mundo na congregação está desesperado, o menino não tinha doença nenhuma, ninguém sabe do que ele morreu.

***

De tudo o que foi contado, muitos pontos podem ter sido aumentados, mas tenho cá para mim que o fato essencial deve ser verídico e deve ter sido preservado ao longo das diferentes versões: um menino de 7 anos morreu.

E ficamos apoquentados com a coisa horrível que vai acontecer depois da Copa. (Como se já não soubéssemos que essa coisa horrível é a eleição…)

Sendo que a coisa horrível já aconteceu.

Um menino de 7 anos morreu.

Mas bora esquecer isso rapidinho e focar no imagina-depois-da-copa.

Não está tendo Copa, não está tendo menino de 7 anos, não está tendo luto pelo menino de 7 anos.

Fim

A Liga do Barril

A história, como eu a lembro, é assim: P. e seus amigos, uns 15 anos de idade, picharam alguns muros, em 1969 ou 1970. Não sei se a pichação como a entendemos hoje já existia naquela época, e tampouco sei se é correto chamar inscrições a giz de pichação. O que me disseram é que os meninos escreveram “Liga do Barril” em muros do bairro, a giz. Era o nome da turma deles – e, aos 15 anos, você tem certeza de que a Liga do Barril é para sempre.

Tanto espalharam seu nome pelo bairro, que um policial viu.

Veio perguntar para os meninos que Liga do Barril era aquela.

Se eles se interessavam por política.

Se aquilo era coisa de subversivo.

A história não tem graça nenhuma, adianto desde já: o policial rapidamente se convenceu de que Barril não era um código secreto para Foice ou Martelo (“ô seu guarda, a gente só quer saber de estudar, a gente não sabe nada desse negócio de política não!”), mandou os meninos apagarem as marcas a giz, e pronto.

Graças a Deus, me contaram, não aconteceu nada demais.

Graças a Deus, ninguém ali se interessava por política.

Graças a Deus, ninguém ali era subversivo.

Tudo acabou bem. 

***

Conheço pessoas que sofreram marcas profundas da ditadura.

A minha marca foi esta outra: de giz, no muro. Apagada às pressas.

Estas foram algumas lições que a ditadura me ensinou:

Que, se você se interessa por política, alguma coisa você tem para esconder. Alguma você fez. 

Que, se você se interessa por política, você está a um passo de ser subversivo. Você é, por princípio, suspeito.

Que quem não deve, não teme – e quem não deve certamente não se interessa por política.

Quem não deve é gente que só cuida de estudar e trabalhar, e deixa o interesse pela política para os subversivos que não têm mais o que fazer.

Que um policial pode lhe perguntar, a qualquer momento, se você se interessa por política.

(Aliás, que um policial pode lhe perguntar, a qualquer momento, qualquer coisa.)

E, quando ele lhe perguntar o que quer que seja, é bom saber a resposta certa.

***

Encontrar as marcas da ditadura no Brasil é um jogo dos sete mil erros. 

Mas este não é um post sobre o Brasil – é um post sobre mim.

Em mim, a grande marca que a ditadura deixou foi esta: o aprendizado de que, no mundo, existem as pessoas que estudam, trabalham e não querem saber de política. Estas estão a salvo. Para elas, tudo acabará bem.

E existem as pessoas que querem saber de política – e não querem saber de estudar ou trabalhar. Estas são as que foram se meter onde não deviam. Se apenas tivessem se limitado a trabalhar e estudar, como fazem os bons cidadãos! Mas não: foram inventar de fazer graça.  Depois se metem em encrenca e ainda reclamam. 

*** 

O post é sobre mim, mas minha história não tem nada de especial. Esta dicotomia trabalho/estudo (gente séria e competente, bons cidadãos) x ativismo político (gente preguiçosa e/ou incompetente, que em vez de assistir aula prefere participar de reunião do C.A.; em vez de trabalhar duro, prefere ser sindicalista etc.), para citar Noel, é coisa nossa, muito nossa. Mesmo minha TL, que é decidamente esquerdista, criticou Sininho com base nesta dicotomia. Afinal, “ser cineasta” não é um trabalho de verdade, para o imaginário popular – não é como se ela fosse médica ou engenheira. Então, ela foi encaixada precisamente nesta segunda categoria: de pessoa que se interessa por política e não quer saber de estudar ou trabalhar.

E todo mundo sabe que gente assim sempre acaba se metendo em confusão.

***

Cada vez que questionamos o trabalho de Sininho, encarnamos o guarda que perguntou à Liga do Barril, talvez não com estas palavras, mas certamente com este espírito: 

Afinal, vocês são estudantes ou uns subversivos que só querem saber de política?

O Estado policial, para citar Emicida, é nóis.

*** 

O caminho em direção a um país menos escroto é árduo e incerto. Suspeito, porém, que ele inclui um importante passo: o reconhecimento das marcas que a ditadura deixou impressas em nós.

Mesmo que sejam de giz – mesmo que tenham tentado apagá-las.