Dois Center Norte

Alguns ônibus de São Paulo estão mais para loiras do banheiro do que para veículos usados no transporte público: as pessoas são capazes de jurar que existem, mas poucos verdadeiramente já viram umas e outros. Assim como cada escola tem a sua loira do banheiro particular, cada bairro tem seu ônibus-lenda. O do meu bairro é o Center Norte.

De onde moro, leva-se quarenta minutos a pé e quinze minutos de carro para chegar ao Shopping Center Norte. De ônibus, porém, a viagem chega a duas horas. Não porque o ônibus dê volta – o ônibus vai direto. Apenas porque o ônibus não chega. Dizem que ele é como a tele sena, que passa de hora em hora. Dizem também que demora a passar por culpa do shopping, que já está sempre lotado com as pessoas que vão de carro e os donos do shopping não querem que lote ainda mais com o povaréu que vai de ônibus. Só não dizem que basta dizer três palavrões em frente ao espelho para o ônibus passar. Não que eu já não tenha tentado fazer isso.

Naquele dia eu não estava no ponto perto da minha casa, mas ainda estava no meu bairro. Santana. (Você já ouviu falar das senhoras daqui, eu sei. Elas existem e eu sou uma delas. Não é preciso ter marchado com Deus e pela família para ser uma senhora que mora em Santana, saiba você.) No ponto junto comigo, esperavam também um menino e uma mulher, filho e mãe.

– Vamo, mãe. O pai não vem.

– Não fala bobagem. Claro que ele vem. Ele é seu pai.

– Vem nada, já tamo aqui faz mais de hora, se fosse prele vir já tinha vindo.

 – Ele está a caminho e já deve estar chegando.

– Cê sabe como o pai é. Ele sempre faz isso, deixa a gente na mão. Vamo embora, mãe.

– Quieto, menino.

Então parou no ponto… Um Center Norte! Quis tirar uma foto mas meu celular não tinha câmera.

– Mãe.

– Quê.

– Já passou dois Center Norte. O pai não vem.

A rua era movimentada. Tinha barulho de motor de carro, de buzina, do rádio da lotérica, de criança saindo da escola, do tio do algodão-doce. Mas, quando o Center Norte se foi, levou com ele todo o barulho e deixou apenas o silêncio.

– Tá certo, filho. Vamos.

Pegaram o primeiro Bancários que passou e desapareceram para sempre, em direção ao mesmo lugar misterioso de onde saem as loiras, os ônibus e os pais fantasmas.

Desmilitarizar é só o começo

Para que serve a polícia? Lendo as contas de twitter oficiais das polícias militares do Rio de Janeiro e São Paulo, a resposta não demora a aparecer: descontados os tuítes sobre as manifestações, o tema que mais aparece é droga. PM prende quadrilha com drogas, PM apreende grande quantidade de drogas, PM prende traficantes e apreende drogas, drogas são apreendidas pela PM e todas as mínimas variações possíveis desta mesma afirmação. Suponhamos por um instante, para o bem do argumento, que não existem acordos entre a PM e o tráfico: a principal função da PM, ao que parece, é prender fabricantes e vendedores de produtos para os quais, enquanto houver id nos aparelhos psíquicos deste mundo, sempre haverá demanda.

Então, na prática, a PM tem servido, basicamente, para: 1) cumprindo a lei, impedir o comércio de produtos que muito menos trabalho dariam se fossem legalizados; 2) descumprindo a lei, impedir a ocorrência de protestos que, enquanto a Constituição Federal estiver em vigor, são absolutamente legais.

Com isso, sobra muito pouco tempo e dinheiro para a polícia correr atrás dos velhos e maus crimes – aqueles mesmos, de roubo, estupro e assassinato, para ficar apenas em alguns dos mais obviamente chocantes.

Desmilitarizar a PM é um bom começo, mas ainda é pouco. Só teremos uma avanço profundo no respeito aos direitos humanos neste país quando nossa legislação antidrogas for profundamente modificada.

Metrô Clínicas, onze horas da noite

Era um dia em que, às onze da noite de um sábado, eu esperava o trem na plataforma vazia da estação Clínicas. Era, portanto, um dia de um tempo mítico, quando ainda não havia nova classe média e o metrô era vazio nas noites de sábado. Pois hoje dizem que o metrô não é insuficiente e precário por ser insuficiente e precário, mas porque as pessoas – sempre elas, as malditas pessoas, que agora além de tudo ainda têm mais dinheiro para gastar e mais uma linha do metrô para tomar – insistem em utilizá-lo.

Naquele tempo mítico, então, a linha verde no sábado à noite estava mais para uma pintura de Hopper do que para a deliciosa balada alternativa que é hoje. Compartilhávamos solitariamente o espaço da plataforma esperando o próximo trem, que ainda não vinha com aquele aviso de que este é o enésimo novo trem do metrô!!! Os enésimos novos trens do metrô de hoje vão de 1 a 30, remetendo imediatamente às pizzarias abertas desde 2003!!! e ao nosso estranho mundo onde trinta trens em vinte anos e dez anos assando pizza viraram feitos merecedores de três pontos de exclamação.

Mas nem só de passageiros é feita uma plataforma – há também a presença etérea e inapreensível da Voz do Além, aquela que nos conclama a desembarcar pelo lado esquerdo do trem e que nunca sabemos ao certo se é voz de gente-humana-como-a-gente ou se é uma simples gravação automatizada.

Aquele dia, a Voz do Além anunciou que deveríamos nos manter atrás da linha amarela – não a que liga a Luz ao Butantã, que esta nem existia na época, mas aquela que indica a distância segura entre o trem e a plataforma.

Só que nós, os passageiros, éramos apenas três, talvez quatro – e um de nós postava-se insolente à frente da linha amarela, criança desafiando os limites impostos pelos pais. Ou melhor: adulto percebendo que pode, sim, fazer tudo aquilo que papai e mamãe um dia lhe impediram de fazer. Comer chocolate antes do jantar? Eu posso. Sair do banheiro sem lavar as mãos? Demorô. Ultrapassar a linha amarela? É nóis.

Quer dizer, nóis não – era ele. Um rapaz de camiseta vermelha, nariz empinado e olhar desafiador, quebrando regras e exalando virilidade.

A Voz do Além sumiu por alguns instantes.

Quando reapareceu, já não era do além. A voz oficial do metrô não apenas não era automatizada como era muito mais do que apenas humana: era uma voz carioca.

– Ô da camisa verrmelha. É, é com você merrmo que eu tô falando. Pra trás da linha amarela, ô cumpadi.

Naquela época em que a expressão vergonha alheia não era moda nas redes sociais, e em que a única rede social possível em um sábado à noite parcialmente passado no metrô Clínicas eram os olhares trocados na plataforma esvaziada, os dois ou três passageiros de trás da linha amarela nos entreolhamos fingindo não reparar em nada enquanto o cumpadi da camisa vermelha dava um passo para trás de cabeça baixa, porque papai e mamãe podiam não estar ali, mas o metrô de São Paulo, encarnado em um carioca gozador, estava.

Gente de humanas que faz um monte de coisa que não dá dinheiro

Conversando sobre um amigo – digamos apenas que ele é da ˜área de humanas˜ – que se encontra em apuros financeiros, meu marido perguntou:

– Mas afinal, o que ele faz?

Minha resposta foi imediata, sem censura e sem rodeios:

– Ah, você sabe como é, faz um monte de coisa que não dá dinheiro.

E foi aí que me ocorreu.

Quase todos os meus amigos podem ser definidos exatamente assim: gente de humanas que faz um monte de coisa que não dá dinheiro.

Tenho pouquíssimos amigos que construíram uma sólida e tediosa carreira de sucesso em alguma respeitável multinacional.

Meus amigos, quase todos, fazem, fizeram ou farão trampos de:

design gráfico, tradução, revisão, revisão ABNT, programação, decoração, consultoria de moda, webdesign, transcrição, preparação de originais, editoração, legendagem, publicidade, jornalismo, aula de inglês, de francês, aula em faculdade, em cursinho, mestrado, doutorado, com bolsa, sem bolsa, consultoria/assessoria/gerenciamento de redes sociais, assessoria de imprensa, produção de eventos, crítica de arte, de música, de cinema, cenografia, curadoria, agitação cultural, mapa astral.

Escritores, roteiristas, resenhistas, romancistas, colunistas, cronistas e poetas. Professores, palestrantes, repórteres, artistas e fotógrafos. Produtores, atores e diagramadores. Bailarinos, músicos e psicanalistas. Pós-graduandos em ciências sociais, antropologia e história. Estudantes de graduação em filosofia. Ou, para resumir com termos que nossos tiozões reaças entendem bem: “tudo puta, bicha e maconheiro” <3

Um monte de coisas. Que não dão dinheiro. Nenhuma delas. Nem se juntar tudo.

E eu, que sempre me senti tão sem turma, tão sempre trabalhando quietinha e sozinha em casa, tão avessa ao mundo real repleto de gente com uma CLT na mão e o firme propósito de ganhar dinheiro na cabeça. Eu, que sempre me senti oprimida por aquela propaganda no metrô que mostra um jovem sorridente “decolando na carreira” depois de concluir seu MBA em administração. Eu, finalmente, sorri e me dei conta:

Gente de humanas que faz um monte de coisa que não dá dinheiro – esse é o meu clube, essa é a minha vida.

Somos bichinhos estranhos, nós que somos gente de humanas e fazemos um monte de coisa que não dá dinheiro. Pulamos de frila em frila sempre achando que o de agora vai durar e que o contratante vai pagar em dia. Ignoramos solenemente o fato de que o frila de 2009 pagava exatamente o mesmo que o frila de 2013. Acima de tudo, baseamos toda a nossa vida na convicção de que o próximo frila será melhor, mais interessante e mais bem pago que o atual.

Escrevemos, traduzimos, cantamos e sapateamos. Nosso talentos são múltiplos. Nossa versatilidade é incomparável. Nossa paciência é infinita. Nosso único defeito: não somos uma categoria unida. Se unidos fôssemos, estaríamos nos anúncios do metrô agora mesmo: “venha ser gente de humanas e fazer um monte de coisa que não dá dinheiro você também!” Mas não. Em vez disso, estamos aqui, cada qual surtando com seu próprio prazo e seu próprio cliente inadimplente – ou, no meu caso, tentando escrever mais um texto acadêmico e, em vez disso, escrevendo besteira no blog.

Tenho uma teoria de que nós, gente de humanas que fazemos um monte de coisa que não dá dinheiro, só teremos nosso valor devidamente reconhecido pela sociedade o dia em que o governo quiser subsidiar a vinda de tradutores, fotógrafos, poetas e psicanalistas cubanos. Aí sim seremos importantes – aí sim seremos potência.

Até lá, continuaremos fazendo um monte de coisa – e fingindo para a nossa família e nossos amigos com carteira assinada que ganhamos algum dinheiro.

Receita-abobrinha

Macarrão de última hora para 1 pessoa, receita no 987654321: numa frigideira grande, refoga meia cebola no azeite, refoga. Deixa transparentinha (põe sal), refoga. Fatia fininho aquela parte verde-escura do alho-poró que almas menos evoluídas dizem que é pra jogar fora, fatia. Joga lá com a cebola (põe mais um tiquinho de sal). Refoga, refoga. Fatia meia abobrinha bem fininho. Abre um buraco no meio da frigideira espalhando as cebolas e alhos-porozinhos para os cantos. Espalha as rodelas de abobrinha no centro da frigideira, espalha. Espalha de modo que elas entrem em contato com o fundo da panela o tanto quanto possível. Não amontoa a abobrinha, não amontoa. Põe sal, pimenta do reino, um tiquinho de curry. Refoga, refoga. Vira a abobrinha quando estiver começando a ficar molinha, vira. Pode pôr os temperinhos desse outro lado da abobrinha também se você for um devoto da simetria, ô se pode. Rala parmesão, rala, rala. Quando a abobrinha estiver molinha mas ainda firminha, joga vinagre de vinho tinto, joga. Fica segurando o vidro de vinagre aberto de cabeça pra baixo em cima da frigideira uns quatro segundos. Três é pouco, cinco é muito, quatro tá ótimo, ótimo. Rapidinho o vinagre evapora, rapidinho. Pega a massa que tava fervendo esse tempo todo e joga na frigideira, joga. Coloca também o queijo ralado em cima da massa. Mistura, mistura. Prova. Não tenha medo de pôr mais vinagre se os quatro segundos não tiverem sido suficientes, tenha coragem. Como você saberá que os quatro segundos não terão sido suficientes, como? Você saberá porque a abobrinha terá gosto de abobrinha e não desta outra coisa, que é abobrinha com vinagre e cebola e curry e pimenta e parmesão ralado. Se não estiver com esse gosto ainda, pode sim pôr um pouquinho mais de vinagre. E quando chegar nesse gosto, que é o gosto da abobrinha com vinagre e cebola e curry e pimenta e parmesão ralado, você come. Come, come, come.

Racismo no Quatro de Julho, de Brittney Cooper

[Tradução minha do texto “The N-word on the 4th of July”, de Brittney Cooper, publicado originalmente aqui.]

O voo que tomei para visitar minha família no feriado foi uma experiência dolorosa e aviltante. Eu tinha que dizer algo. Mas o quê?

***

Embarquei em um avião quarta-feira de manhã, em uma corrida desenfreada de Jersey até a Louisiana para passar o feriado de Quatro de Julho com minha família. Tenho plena consciência da miríade de contradições envolvidas no fato de uma feminista negra radical ser uma entusiasta desse feriado. O Quatro de Julho, para a minha família, representa menos uma narrativa estadunidense de liberdade e justiça para todos (um ideal nunca plenamente realizado) do que um momento em que nos reunimos para desfrutar da companhia uns dos outros, fazer um churrasco no calor do verão da Louisiana e, através da mais pura alegria e celebração, oferecer uma pequena mas significativa versão alternativa sobre como nos emancipamos.

Mas a natureza complexa destas viagens de volta para casa geralmente se revela quando a agente de segurança do aeroporto decide que é necessário passar os dedos pelo meu penteado afro, em busca de “armas” não-identificadas. Desta vez, surpreendentemente, isso não aconteceu, e deixei escapar um suspiro de alívio quando a passagem pela segurança transcorreu sem incidentes.

Na fila de embarque, bem à minha frente, estava uma bela e tradicional família nuclear. A mãe era alta e deslumbrante, e tinha dois lindos filhos com cerca de 10 e 7 anos. Por algum motivo, eles tornaram-se objeto de minha atenção enquanto eu embarcava. A mãe gentilmente admoestava o menino mais velho a ler o livro de férias, certificando-se de que seus exercícios estariam disponíveis a bordo.

Enquanto embarcávamos, reparei que esta mãe e eu sentaríamos na mesma fileira, eu na janela e ela no centro. Enquanto aguardávamos a decolagem, terminei de escrever uma mensagem de texto e pedi à aeromoça um extensor de cinto de segurança, o melhor amigo do passageiro gordo. Então, bem no momento em que ouvimos o aviso para desligar os telefones, olhei para o lado de relance e ela ainda estava digitando uma mensagem de texto. Pesquei algumas palavras ao final da mensagem que me fizeram olhar com mais atenção: “tô no avião, sentada do lado de uma preta fedida [nigger] e balofa e a perna dela tá encostando na minha. Que sorte que eu tenho.”

Parei de respirar por um momento.

Então, senti dor. Humilhação. Constrangimento. Raiva.

Ainda me lembro da primeira vez em que fui chamada pela palavra “N”. Foi por volta de 1988, eu estava na terceira série. Minha colega de classe, uma pobre menina branca chamada Vicki, decidiu terminar uma briga infantil gritando “Sua PRETA FEDIDA [dirty nigger]!” Eu, na época com sete ou oito anos de idade, fiquei perplexa. E permaneci em silêncio. Nunca ouvira aquela palavra usada daquela forma antes. Não sabia o que significava. E, ainda assim, senti sua força e sua conotação cáustica de forma visceral.

Naquela mesma noite, me aproximei de minha mãe na cozinha enquanto ela servia o jantar, e perguntei: “O que significa a palavra ‘nigger’?” Antes que ela pudesse responder com palavras, simplesmente registrei sofrimento em seu rosto. Olhando retrospectivamente, vejo aquela dor como a dor de um pai ou mãe que se depara com o alcance inevitável dos problemas de outras pessoas, contra os quais você não pode proteger o seu filho. Era também a dor de uma mãe negra deparando-se com a inevitabilidade do primeiro encontro de uma criança com o racismo. Depois de perguntar por que eu queria saber, ela disse simplesmente: “Significa uma pessoa ignorante”.

Hoje, quando fui chamada pela palavra “N”, parte de mim sentiu-se como aquela menininha de novo. Senti o insulto de forma igualmente visceral, o pressentimento terrível de que havia algo de errado não com qualquer coisa que eu houvesse dito ou feito, mas algo de errado comigo, simplesmente. Imediatamente, senti-me extremamente vulnerável e insegura – olhei ao redor, sentindo-me marcada, pensando se os outros estariam achando meu corpo grande e minha pele escura tão desagradáveis quanto achava minha vizinha de fileira.

Sei que sou gorda. E fico especialmente apreensiva com isso em aviões, já que me preocupo em ocupar muito espaço. Na minha imaginação, sempre penso que as pessoas vão odiar ao me ver chegando, pois os americanos levam muito a sério o espaço pessoal. Não sou exceção a esta regra.

Ainda assim, eu estava completamente consciente, pelo menos em um nível intelectual, de que o problema era dela e não meu. Mas qual seria a minha reação? Embora ela mesma não fosse nenhum palito, era uma senhora branca, mãe, com filhos e um marido – todos os sinais de respeitabilidade da classe média americana. Além disso, ela escrevera aquelas palavras em uma mensagem de texto particular. Sou uma mulher gorda, negra, de pele escura. Se eu tivesse armado um escândalo e resolvido a questão como ela merecia, é bem provável que eu tivesse sido vista como uma ameaça terrorista. Especialmente na véspera do Quatro de Julho.

E este é o problema com feriados americanos: frequentemente eles mudam o foco e confundem a narrativa, de modo que vilões são vistos como benfeitores e vítimas são vistas como agressores. O Dia de Ação de Graças, em que o país comemora o genocídio de nativos agradecendo por gerações de riqueza construídas a partir do saque de suas terras, é um bom exemplo. O modo como os feriados americanos naturalizam as violências rotineiras que deram origem a esta república faz com que feriados como o Juneteenth, o dia em que comemoramos o verdadeiro fim de toda a escravidão nos EUA, sejam tão necessários.

O que, então, eu poderia dizer? Algo. Eu tinha que dizer algo. Mas o quê?

Comecei compartilhando as palavras dela em uma atualização de status no Facebook – em parte porque, recentemente, eu vira demasiados amigos, negros e brancos, prontamente defendendo Paula Deen, argumentando que seu uso da palavra “N” era o resultado compreensível de suas raízes sulistas, e seguramente um resquício de uma era passada.

No entanto, aparentemente esta jovem família, em que os pais pareciam ter trinta e poucos anos, era de um estado do norte. Então, depois de esperar um pouco e conter as lágrimas que brotaram logo que vi aquelas palavras, simplesmente chamei sua atenção e pedi-lhe para ler o status do Facebook em meu telefone.

Ela viu, emitiu uma espécie de grunhido de assentimento, e não disse nada. Então prossegui, em um tom de voz baixo: “Só quero que você saiba que suas palavras foram ofensivas. E espero que você não passe esse tipo de ignorância para os seus lindos filhos.” Ela respondeu secamente: “Eu não passo.”

Passamos o resto do voo para o sul juntas, ela sendo uma mãe zelosa para os filhos, eu rezando para que as sementes de ódio que ela está plantando não caiam em solo fértil.

Sobre vira-latismo e arrogância

Muito se fala sobre o nosso complexo de vira-lata, mas quase nada falamos sobre nossa gigantesca arrogância – sobre essa mania de achar que não somos latino-americanos. “Ah mas a cultura é diferente aqui a gente fala português e temos o samba e o fute…” – antes que você prossiga canhestramente com “o futebol”, permita-me interrompê-lo e dizer: não é só uma questão de diferença. Nós nos consideramos alheios à América Latina porque nos consideramos superiores a ela; nos cremos sinceramente superiores a vizinhos que não temos nenhum pudor em chamar de “cucarachas”. O silêncio de Dilma é a mais perfeita expressão de uma arrogância que está coletivamente entranhada em nós. Somos vira-latas em relação aos Estados Unidos e, em menor grau, à Europa; enquanto isso, achamos muito natural que bolivianos não possam ter conta em bancos brasileiros e achamos muito absurdo que médicos cubanos sejam melhores que os nossos. Nosso vira-latismo é apenas o outro lado da nossa arrogância. Impossível falar em um sem falar no outro.

Duas bandeiras, duas pautas: um país

Na Avenida Paulista, hoje, eu vi o Brasil.

De um lado, manifestantes bolivianos contra a violência; de outro, manifestantes brasileiros contra a corrupção.

De um ponto de vista objetivo, ambos os grupos carregavam bandeiras nacionais, cada qual de seu país, e ambos os grupos protestavam contra alvos tão amplos quanto óbvios em sua desejabilidade (ninguém em sã consciência pode ser a favor da violência ou da corrupção).

E, no entanto, nunca duas bandeiras nacionais foram tão diferentes. A bandeira da Bolívia, ali, era símbolo de uma luta por direitos. A do Brasil, patriotismo vazio. Da mesma forma, nunca dois bicho-papões genéricos me pareceram tão distintos. A (vítima da) violência, ali, era bastante real e concreta – tinha nome, rosto e idade. Já o grito contra a corrupção, metáfora do Mal, era aquele de sempre – atento aos corruptos, desatento aos corruptores e completamente cego para as estruturas.

Uma aula de contexto, a rua.