O dia de 24 horas

Uma das grandes mentiras que nos contam é que o dia tem 24 horas.

Para o seu dia ter 24 horas, é preciso ser relativamente jovem, sem filhos e com preocupações financeiras que se limitem a “peço caipirinha com vodka nacional ou importada?”.

Aos cinco anos de idade, o dia tem aproximadamente noventa e seis horas. Toda experiência é de vida ou morte, pois toda experiência é quase infinita. O chocolate que se toma, a massinha que se amassa, a mãe que se abraça, é tudo eternamente docinho, molinho e quentinho, não necessariamente nessa ordem. Por outro lado, quando o menino mau te tranca no banheiro da escola você fica lá para o resto da vida também. Ter cinco anos não é fácil.

Aos quinze, dezesseis, dezessete anos, o dia já é um pouco menor, mas ainda dá para fazer bastante coisa. Nas cerca de setenta e duas horas do dia, é possível ir à escola, estudar a tarde inteira, dormir a tarde inteira, ver televisão a tarde inteira, ir ao shopping com os amigos, pensar se ele gosta de mim, ligar para ele e desligar correndo, chorar porque ele não gosta de mim, ficar com o melhor amigo no telefone a madrugada toda – tudo isso em umas trinta e seis horas horas. As trinta e seis horas restantes você emprega em questionamentos acerca das suas reais chances de algum dia fazer sexo na vida, que você sempre conclui serem um pouco maiores do que participar de uma Olimpíada, porém um pouco menores do que ganhar um Oscar.

As horas do dia diminuem drasticamente no momento em que se inicia um curso de graduação. É um mundo novo, repleto de pessoas novas com histórias de vida totalmente diferentes da sua – mas todos estão passando pelo mesmo processo de encolhimento do tempo. De repente, pela primeira vez, é preciso fazer escolhas. As quarenta e oito horas do dia não são suficientes para ir a todas as festas e estudar para todas as provas. É preciso selecionar os bares, as matérias, os amores, os trabalhos, as drogas, as músicas e as pessoas às quais você quer se dedicar. Mesmo assim, em um só dia ainda era possível desenvolver razoável número de atividades. Eu, por exemplo, costumava passar umas oito horas por dia ouvindo música, oito estudando e trabalhando com psicologia e oito parada no trânsito da marginal. Nas outras vinte e quatro horas, eu me dedicava com afinco a ser uma mocinha apaixonada e meio surtada.

É nessa idade, aos vinte e poucos anos, que você se dá conta pela primeira vez de que você não tem tempo. Os mais velhos dizem que você tem, mas secretamente você sabe que eles estão apenas sendo gentis.

Aos vinte e muitos, finalmente, o dia começa a ter cerca de vinte e quatro horas, e você já se conformou com o fato de que não irá cumprir nem com metade daquelas coisas que os livros da série antes-de-morrer exigem que você faça.

Tudo isso, naturalmente, muda num piscar de olhos com a chegada de um filho. Nesse caso, o dia inteiro se reduz a uma única hora.

Nada disso, por outro lado, se aplica se desde sempre e para sempre você tem de trabalhar o dia inteiro para comprar comida. O dinheiro é um dos maiores modificadores do tempo que há, não porque tempo = dinheiro, mas porque falta de dinheiro = tempo a serviço do que alguém determinou, não a serviço do que você quer, precisa ou gosta.

(O outro grande modificador é o amor, mas esse é mais complicado.)

Hoje, aos trinta e cinco e sem filhos, meu dia dura umas vinte horas, que passo basicamente trabalhando, lendo sobre a crise política nos EUA e a crise climática no mundo. Aos vinte e pouco anos, eu reclamava que não havia horas suficientes para ler todos os livros. Aos trinta e médios, já fiz o luto dos livros não-lidos – o que eu queria mesmo eram horas para dormir de verdade.

Ainda estou relativamente próxima do dia de vinte e quatro horas. Por enquanto, dias mais curtos parecem improváveis e inimagináveis.

Mas no fundo eu sei, todos sabemos, não nos enganamos – no futuro, não é que teremos quinze minutos de fama. Teremos quinze minutos, simplesmente. É o tanto que nossos dias irão durar.

Sete marinheiros americanos

Talvez vocês tenham lido, talvez não, que sete marinheiros americanos morreram em uma colisão com um navio japonês.

Bom – eu li. E, claro, sequer registrei a notícia. As pessoas nascem, crescem, fazem selfies e morrem, o que que eu tenho a ver com sete marinheiros americanos, etc.

Até que agora à noite vi uma foto dos marinheiros.

Calma que este não é um post sobre como de repente fui tocada no fundo do meu ser sobre a individualidade e a singularidade dos seres humanos e comecei a chorar loucamente por sete marinheiros americanos. (Não é, mas podia ser, claro – esse tipo de coisa acontece com todo mundo toda hora.)

Este é um post sobre – Jesus, não é incrível o tanto que a gente não sabe de nada?

Vi a foto e quase caí para trás. Os sete marinheiros americanos eram… Meninos. Saídos da escola. Carinha de vinte anos.

A foto me deixou quase ofendida. Mas como assim os sete marinheiros não são homens fortinhos de meia idade?

Foi quando, evidentemente, me dei conta de que, sem perceber, eu já estava plenamente convencida de que os sete marinheiros americanos eram sete marinheiros popeye.

Eu passo pelo mundo sem nem mesmo saber que tenho certeza de que algumas pessoas são marinheiros popeye, cebolinhas, scoobydoos.