Não sou uma pessoa visual. Esta é uma ressalva covarde porém necessária em um post que tem o nome Hopper já no título. Mas, mais que não ser uma pessoa visual, não sou uma pessoa “multi”, com tudo o que de bom e de péssimo isso implica. Não é só que não consigo multitarefar – comer ouvindo música, trabalhar assistindo filme etc. -; também sou incapaz de multisentir. Porque há pessoas que ouvem uma sinfonia e são remetidas a suaves noites de verão; há pessoas que leem um poema e é quase como se sentissem um agradável aroma floral. Eu não sou essas pessoas. Sinfonias me remetem a outras sinfonias, noites de verão a outras noites de verão e assim por diante. Não costumo misturar as coisas.
Por isso, fui tomada de surpresa ao perceber que o livro que eu estava lendo não me remetia a nenhum outro livro, e sim a… Pinturas.
Vida Querida, de Alice Munro, é um conjunto de contos. Li o primeiro e achei meio besta. Mas continuei lendo e lendo e fui sendo tomada por algo que eu só tinha sentido uma vez antes, e por isso custei um pouco a identificar: a sensação de olhar para uma pintura de Hopper por tempo suficiente.
Então, já que graças a deus isto é um blog e não um trabalho acadêmico, eu não vou falar propriamente nem dos contos nem das pinturas, mas da minha sensação.
Esta sensação, que só posso chamar de Munro-Hopper, tem, em primeiro lugar, algo de familiaridade e cotidianeidade. E tudo bem que Munro trate basicamente do Canadá e Hopper dos EUA da década de 1950: os contos e pinturas não precisam tratar do meu cotidiano para que eu reconheça, neles, algum cotidiano e familiaridade. São pessoas comuns, levando vidas comuns, sem fazer nada demais.
Mas os contos de Munro não falam de um cotidiano do tipo que a pessoa acorda, toma café, vai pro trabalho, tem mil pensamentos loucos, volta pra casa e no fim das contas nada realmente aconteceu. Há suficientes acontecimentos memoráveis e traumáticos ali – traições, mortes, acidentes. Que familiaridade e que cotidiano, então, são esses?
Quanto mais penso nisso, mais me convenço de que essa sensação de “vida comum” vem do mundo interno dos personagens. Exceto em um caso específico, os personagens não têm pensamentos muito loucos e dignos de nota. Eles têm pensamentos, assim, meio bobos. Como os meus e, suponho, como os seus também. Como, por exemplo, a menina que, ao ser questionada pela mãe se ela se divertiu com o pai no fim de semana, responde que sim – porque, para ela, “divertir-se” era simplesmente o nome que se dava a “sair para passear com o pai”; ela não sabia que a palavra se referia a um estado de espírito. Ou como a senhora que, depois de procurar um endereço pela cidade toda, de repente sente aquela mistura de pânico com vergonha: “será que o endereço certo estava esse tempo todo logo ali onde eu estacionei o carro e eu não olhei direito?!” – e quando ela vai ver, não, ela tinha olhado direito sim, o endereço não era mesmo aquele.
São detalhes como esses que foram compondo um quadro maior de familiaridade para mim – que, no entanto, nunca chegou a se completar, como um quebra-cabeças onde faltassem as principais peças.
E as principais peças do quebra-cabeça da sensação Hopper-Munro são formadas por uma coisa só: a solidão. Profunda e inescapável, ela está presente em todos os contos, em todos os quadros – é ela que impede a sensação de familiaridade de se transformar em uma chatice sem fim, uma sucessão previsível de vidinhas e casinhas e cinemas e faróis. Em Hopper, acho que é algo na luz, mais que na expressão vazia das pessoas, o que comunica a solidão (nada poderia ser mais solitário, por exemplo, que aqueles faróis). Em Munro, acho que a solidão é dada pelos desencontros entre os personagens. Não é que não haja amor, pelo contrário – é só que as histórias de Vida Querida deixam claro que nenhum amor elimina a solidão. Como a mulher que enlouquece de ciúme quando o marido reencontra sua paixão de juventude – o amor entre mulher e marido existe; a solidão da loucura é só dela. Ou a mulher que tem a sensação de estar traindo a família – seja com algum amante, seja com seu ofício de poeta. Ou como a mulher que tem de conviver com a realidade de, quando menina, não ter sido capaz de salvar a irmã. Ou a menina que, pelo contrário, é invadida por um desejo tenebroso de estrangular a irmã (sendo este é o único caso de “pensamentos muito loucos” do livro). No fim das contas, todos esses personagens, por mais que tenham maridos e amigos e parentes, enfrentam fantasmas que simplesmente não podem ser compartilhados.
Estou citando contos cujo personagem principal é feminino, mas o conto que mais me encantou, “Trem”, descreve um homem que, se eu disser que foi “marcado por um trauma de infância”, certamente não estarei fazendo jus à sutileza do texto. Direi apenas, então, que o título me fez lembrar do comentário de Freud sobre a tendência das crianças – ou pelo menos das crianças vienenses do início do século XX – de usar os trens como símbolos sexuais (uma colisão de trens representando uma relação sexual, por exemplo). O conto não afirma nada disso, claro – prova de sua potência é o fato de ter despertado em mim essa lembrança, há muito tempo esquecida.
Os quatro últimos contos do livro são autobiográficos – e isso não faz diferença nenhuma. Todos os elementos dos outros contos estão lá: o cotidiano, a solidão, os desencontros, a delicadeza. Fico um pouco hesitante em usar da palavra “delicada” para descrever a escrita de uma mulher, porque pode parecer a alguns que “delicado” tem algo a ver com florzinhas ou bichinhos fofinhos. E delicada, na escrita de Munro, é a composição das personagens – assim como é delicada, em Hopper, a forma de pintar a luz.
Penso nesses contos mais como descrições, pinturas, panoramas do que como apenas narrações de histórias. Ao mesmo tempo, sinto que as pinturas de Hopper frequentemente querem me contar histórias.
É isso: se as pinturas de Hopper escrevessem, escreveriam os conto de Munro.
E mais não digo.