Prova de história, 30/06/2063

Vai ser legal quando, daqui a cinquenta anos, ajudando minha neta a estudar para a prova de história, ela me perguntar:

– Mas, vovó, deixa ver se eu entendi. O Rio de Janeiro estava cheio de polícia na rua impedindo a circulação de pessoas perto do estádio, é isso mesmo?

– É, sim, netinha.

– E essa mesma polícia tava jogando bomba em quem carregava cartaz?

– Isso, querida. E naquela época todo mundo já conseguia ver a polícia jogando bomba em tempo real, não tinha como esconder – no meu tempo, a gente ficava sabendo das notícias através duma coisa chamada internet.

– Internet, que época engraçada devia ser. Mas voltando, a polícia agia assim por determinação duma tal fofa, né?

– Sim, mas não é tão simples assim. O governo também tinha responsabilidade nisso, porque a polícia recebe ordens do governo e o governo foi acatando as determinações da FIFA sem pestanejar – é por isso, também, que as pessoas estavam protestando. Aliás, anota aí: não é fofa, é FIFA.

– Internet, fifa, desculpa, vovó, é muita palavra engraçada pra uma prova só.

– Você tem razão, é engraçado mesmo. Mas qual é a sua dúvida, afinal? Até aqui, parece que você está entendendo tudo direitinho.

– Minha dúvida é a seguinte. Se a polícia tava lá jogando bomba. Impedindo as pessoas de saírem de casa. Ah, e teve outra coisa também: se, dias antes, a polícia matou – quantas foram mesmo? Ah, tá aqui: 13 pessoas…

– Sim, tudo isso tá certo. Quer dizer. Tá errado. Mas tá certo, no sentido de que realmente aconteceu.

– Pois então – se tudo isso realmente aconteceu… Por que é que tinha um monte de gente gritando GOOOL cada vez que o time do Brasil fazia gol?

– …

– Por que, hein, vovó?

– Não sei, minha neta.

– Mas e se cair essa questão na prova, o que é que eu respondo?

– Responde assim: que uma coisa é uma coisa. E outra coisa é outra coisa. E quem tava se importando com outra coisa não tava muito preocupado com aquela coisa toda anterior, a primeira.

– Agora ficou difícil, vovó.

– Eu sei, querida. Mas não se preocupe: o importante é que você está muito bem preparada e vai tirar dez na prova!

Sobre carros, e talvez sobre algo mais

carro

Não gosto de carro. Acho a priorização do transporte individual sobre o transporte coletivo uma das piores políticas já implementadas no Brasil. Acho a paixão nacional por carro um dos maiores símbolos de nossa indigência espiritual. Acho cafona ir de carro a qualquer lugar onde se poderia ir de forma mais rápida e confortável de ônibus, metrô ou trem (em São Paulo, esses lugares infelizmente não são muitos, mas existem).

Então você que me conhece poderia argumentar, “ah mas você não gosta de carro só porque sua mãe morreu em um”, e eu diria que minha mãe ter morrido em um acidente de trânsito me parece um motivo tão bom quanto qualquer outro para não gostar de carro.

Não gosto de carro e, hoje, caminhando rapidamente pelo trecho musical da Teodoro Sampaio, tive de frear quando me aproximei de três senhoras que, à minha frente, caminhavam bem devagar, uma ao lado da outra; fui tentar ultrapassá-las para continuar em meu ritmo rápido, quando logo recuei:

Eu tentara ultrapassá-las pelo lado direito da calçada – e, como se sabe, “ultrapassagem só pela esquerda”.

Não gosto de carro e isso de forma alguma me torna imune ou menos permeável à nossa opressiva cultura do carro. Sou uma pessoa que, caminhando, faz freagens e ultrapassagens (sempre pela esquerda, claro – sou o que a PM de Minas chamaria de ˜pessoa de bem˜). Digo isso não como quem se sente tendo feito algo idiota ao aplicar uma regra do trânsito de automóveis ao trânsito de pedestres – digo isso na condição de pertencente a uma classe média urbana para a qual uma pessoa só adquire cidadania plena no momento em que adquire um carro. Nesta condição, é inevitável ser atravessada por valores que nem sempre (quase nunca?) são os meus valores individuais. Assim como todos os que fomos criados na tradição filosófica ocidental estamos imbuídos de um sentimento segundo o qual o corpo é um invólucro material desprezível habitado por uma alma pensante (ou, vá lá – se formos materialistas e ateus, o corpo é um invólucro material desprezível sem nada que o anime e ponto), todos os que fomos criados na tradição filosófica paulistana-urbana estamos convencidos de que o carro é o meio de mobilidade urbana por excelência. O carro é o terreno filosófico comum sobre o qual transitam os paulistanos.

Ultrapassei as senhoras pela esquerda. Mais tarde, ao pegar metrô e ônibus, senti uma alegria quase infantil ao ver os números 3,00 e 1,65 registrados nas catracas. E fiquei pensando: valores, assim como tarifas, não são imutáveis, afinal. Se tudo-isso-que-está-acontecendo-agora contribuir para que meus filhos, um dia, saibam “naturalmente” e “desde sempre” que andar de ônibus é uma opção tão digna quanto andar de carro, já terá valido a pena.

Toddynhos

Quando eu era criança e aconteciam essas coisas complicadas de corrupção e inflação e impítimem eu tentava ler a Veja e não entendia nada, mas não tinha problema porque o meu pai lia, então eu perguntava pro papai (que eu chamava de popai) o que estava acontecendo e arregalava os olhos enquanto ele me explicava, por exemplo, que o governo mandava imprimir mais dinheiro que o dinheiro que tinha e é por isso que o toddynho de hoje estava o dobro do preço do toddynho de ontem.

Então eu cresci e continuei não entendendo nada dessas coisas complicadas de esquerda e políticas econômicas e movimentos sociais, mas continuou não tendo problema: o Paulo, o Alex, o Idelber e a Mary me explicavam pela internet tudo o que eu queria saber, eu arregalava os olhos e eles escreviam sobre desigualdade, estrutura, racismo e mais um monte de coisa que fazia com que eu fosse capaz de comprar o toddynho no mercado enquanto outras pessoas não, e depois com o Lula muita gente passou a poder comprar toddynho também, e eles me explicaram isso tudo.

Aí hoje a Mary me falou, “eu não entendi o q ela propôs tb”.

Ô-ou.

E agora tem um monte de pessoas me adicionando nos saites da internet na esperança de que eu as ajude a entender por que que o toddynho agora é sabor cachaça.

Eu só acho que devíamos tomar um porre de toddynho, nós todos.

O que me assusta, o que me apavora e o que me dá esperança

Quanto mais eu penso (e, confesso, pensar com clareza e coerência não tem sido exatamente o meu forte esses dias – em compensação, virei uma máquina devoradora de textos), mais me dou conta de que as duas únicas coisas que me preocupam neste momento não são, na verdade, nem um pouco novas. A diferença é que, agora, elas estão muito mais presentes e próximas, então ganharam uma densidade inédita – mas nada que já não estivesse no ar há muito tempo, para não dizer desde que me entendo por brasileira (sem orgulho e sem amor, por favor).

Em primeiro lugar, cabe considerar a tchurminha miguxa, que vai desde o cara de branco entoando o hino e fazendo coraçãozinho com a mão, passando pelo tio-reaça-do-pavê com demandas políticas bem diferentes das minhas (“pelo fim da bolsa-esmola!!” etc.), até chegar no careca assassino que senta a mão em gente de camiseta vermelha. Esse pessoal – em graus diferentes, obviamente – me assusta? Eu mentiria se dissesse que não, mas também mentiria se dissesse que não sabia que toda essa fauna de há muito povoa o país – uma rápida olhada pelas caixas de comentário dos grandes portais já era prova mais que suficiente de sua existência. A diferença é que eu não estava acostumada a vê-los empunhando cartazes pela rua, essa é que é a verdade. Mas dizer que eles nasceram (ou, vá lá, ˜acordaram˜) ontem, como diz a ideologia oficial, seria tão ingênuo quanto achar que os movimentos sociais só surgiram agora – a voz da tchurminha miguxa sempre se fez ouvir pelos almoços de família e caixas de comentário Brasil afora. A diferença é que agora ganharam as ruas. E, com exceção dos carecas que saem na porrada, não custa lembrar que ninguém aí está cometendo nenhum crime: o fato de eu não ter elaborado muito bem o fato de que comentaristas de portal existem e carregam cartazes diz muito mais sobre mim – i.e. sobre a minha própria imaturidade política, e quiçá emocional – do que sobre eles.

Em segundo lugar – e isso é o que realmente me assusta, muito mais do que Regina Duarte seria capaz de expressar -, estou realmente apavorada com a ação das PMs em todo o país, comandadas pelos diversos governos estaduais. Os relatos de violência gratuita são escabrosos e vêm sendo fartamente documentados. Mas, se eu for honesta comigo mesma, também devo reconhecer que essa violência não é propriamente nova – como já foi dito, é a realidade cotidiana das periferias urbanas e comunidades indígenas de todo o Brasil. A diferença é que, agora, essa violência toda chegou mais perto. Com mais descaramento. Sem nenhuma vergonha. À luz do dia. Na Avenida Paulista e em outros cartões-postais. Endossada pelo governo federal.

Se no caso do espectro coxinha-skinhead meu susto não é nada muito preocupante, no caso das PMs meu medo infelizmente é muito bem fundamentado. A violência disseminada pelas PMs não é fruto de despreparo, muito pelo contrário: as PMs estão, isso sim, muitíssimo bem preparadas para agir violentamente. O que temos visto são ações militares orquestradas para coibir manifestações – difusas ou não, isso não importa – inteiramente legítimas, e com o respaldo (nunca é demais ressaltar) do governo federal. Se isso não for motivo de pânico, não sei o que é.

Por fim, há algo que me dá esperança. Se é verdade que muita gente está “vindo para a rua” pela primeira vez agora – e permitam-me eu mesma ser um pouco coxinha e usar rua, aqui, como metáfora de “debate político” -, então essa gente muito provavelmente entrará em contato com quem há anos ocupa essa mesma rua reivindicando transporte público gratuito e de qualidade, melhores salários para professores da rede pública, cotas raciais nas universidades, direitos das mulheres e tantas coisas mais. Se há um choque e um estranhamento, portanto, ele deve ser mútuo, afetando tanto coxinhas quanto esquerdinhas; e minha aposta é de que esse choque pode ser bastante transformador, para todos os envolvidos. Para mim, pelo menos, já está sendo.

P.S. Em tempo: imagino que metade das pessoas que me conhecem deve me considerar esquerdinha, por causa das ideias que tenho e expresso; a outra metade deve me considerar coxinha, pois sou a proverbial ativista de sofá. Imagino que haja muitas outras pessoas em situação semelhante à minha, o que mostra que essa tosca polaridade esquerdinhas-coxinhas, como não poderia deixar de ser, não dá conta de uma realidade muito mais complexa.

PSTU: O melhor texto sobre o que está acontecendo é este. Concordo com o autor em que “o processo como um todo tornou-se algo tremendamente assustador, cuja direção, daqui por diante, é muito difícil de divisar. Não vejo transformações importantes acontecendo no curto prazo, até porque as vias que chegaram a se abrir, como a questão do oligopólio dos transportes, a violência policial ou o gosto por sangue dos editoriais, rapidamente se fecharam. Foram esquecidas. (…) Mas (…) o plano das disputas sociais e políticas terá sofrido, sim, um ligeiro deslocamento, nem que seja a consciência no governo federal de que alguma satisfação deve ser dada à população. Nem que seja um novo sopro de forças nos movimentos sociais, que talvez passem a sair a público com cada vez mais vigor. Nem que seja a identificação das forças que nos puxam para trás, para que ao menos tentemos neutralizá-las ou enfraquecê-las um pouco. No mínimo, o debate se dará em bases ligeiramente diferentes, o que pode parecer pouco, mas já é uma grande transformação.”

Sobre doces, e talvez sobre algo mais

Eu não sou a louca do doce. Em festa de criança, meu olhar é imediatamente atraído pela mesa das coxinhas, empadinhas e risoles, e só depois, bem depois de comer meia dúzia de cada salgado, olho com algum interesse para os brigadeiros e olhos de sogra – e como mais meia dúzia de cada, claro, como deve ser. Mas o ponto é que os salgados sempre vêm primeiro. E, ainda tentando provar meu ponto, nunca mamei leite condensado na lata. Não como doce por ansiedade. Como doce, e todo o resto, pelo prazer do esporte. Quando estou ansiosa, roo as unhas, não detono a caixa de bis. Que mais? Detesto refrigerante. Não adoço o café. Nem o chá. Nem muito menos – deus me livre – o toddy.

Por tudo isso, sempre achei que, se algum dia eu tivesse de restringir o consumo de doces por qualquer motivo, não seria nem um pouco difícil. Eu já nem como tanto doce mesmo. Aliás, nem gosto do que é doce demais. Nem de chocolate ao leite eu gosto muito. Quanto mais amargo, melhor.

Então recentemente descobri que tenho “alto risco para diabete”. Ou “alta propensão”. Algo assim. Um nível de glicose preocupante para uma pessoa de trinta e um anos, não-obesa e não-sedentária. Minha única alternativa, se eu não quiser tomar remédio logo (e, gente, odeio dorgas de qualquer tipo exceto vinho, saquê, vodka e anticoncepcional – todas as outras, prefiro evitar ao máximo)… É mudar minha alimentação. E restringir o consumo de doces.

Quão difícil isso poderia ser, não é mesmo? Afinal, eu mal como doce.

Então comecei esse processo de mudança.

Foi só então que constatei que, todos os dias, como uma torradinha com geleinha de manhã. Depois do almoço, um quadradinho de chocolate com o café. OK, vá lá – quem estamos tentando enganar – dois quadradinhos. Mais um pedacinho de bolo à tarde. E à noite, depois do jantar, mais um biscoitinho de chocolate, para arrematar. Tudo no diminutivo, claro, para não parecer que eu ingeria uma enorme quantidade de açúcar todos os dias.

Mas, como eu ia dizendo – comecei. E continuei. E mudei: parei com os doces. Funcionou. A glicose baixou e tudo está bem. Agora, como doce uma vez por semana só.

Se você me perguntasse há dois meses “o que você comeu de doce hoje”, eu nem sequer saberia responder. Porque simplesmente não prestava atenção. Era parte de uma rotina, era algo natural e instituído que eu decididamente não cogitava mudar.

E hoje – bem, você não perguntou, mas eu vou contar:

Eu sei exatamente cada doce que comi no mês que passou. Este sábado comi doce de banana com queijo branco. Sexta-feira da semana passada, um brownie de limão com coco que minha amiga fez. No sábado anterior a esta sexta, devil’s cake com frozen yogurt do America. Lembro exatamente de cada situação. Do sabor de cada uma dessas coisas. Do que eu estava sentindo e pensando quando comi cada uma delas. O devil’s cake eu comi sozinha, depois de uma semana inteira sonhando com ele. Eu estava preocupada com um texto que iria apresentar em um congresso. Mas a hora que o bolo chegou, deixei tudo de lado e simplesmente deixei-me envolver pelo milagre que é o chocolate entrando em contato com o iogurte congelado, fazendo-o derreter. O brownie me foi servido pela minha amiga, que cortou um pedaço para mim enquanto conversávamos sobre o mercado imobiliário da cidade. E o doce de banana eu estava em casa, com meu marido, e enquanto comia eu dizia que todos os dias deveríamos fazer um minuto de silêncio agradecendo a cada um dos heróis invisíveis e esquecidos que inventaram o cheese cake, o caramelo, a musse, o pudim, o quindim, a baba de moça. (OK, essa última parte eu me empolguei e acrescentei agora.)

Preciso dizer?

Preciso. Para mim mesma:

Mudar não é fácil. Mas não mesmo. Aliás, para utilizar o tempo verbal adequado, preciso recorrer à Kátia Cega: não está sendo fácil.

Sabe o que é fácil? Eu vou dizer o que é fácil:

Fácil é ficar esparramada no sofá com o feissy aberto em duas janelas, uma para você bisbilhotar fotos de pessoas com vidas mais emocionantes do que a sua e outra com o candy crush bombando, enquanto ao mesmo tempo você revê pela quinta vez um episódio de Friends e detona um pote de ranguendás, totalmente absorvida pelo sorvete, pela Rachel, pelo brigadeirão e por aquela sua amiguinha tímida da terceira série que hoje em dia é gata e tem um relacionamento e uma carreira muito mais excitantes do que as suas.

Percebi que eu tinha caído na velha cilada de menosprezar os problemas – e principalmente as soluções – dos outros. Fulano é diabético e parou de comer doce? Ah, mas parar de comer doce é fácil. (Ou: “É modinha. É coisa de hipster. Não é nada demais.”)

Fácil mesmo é diminuir, desconsiderar, fazer pouco caso de uma pessoa ou grupo de pessoas que estão tentando imprimir alguma mudança em um processo que vinha, de há muito tempo, cristalizado.

Meu risco elevado para diabete serviu pelo menos para isso: para eu olhar para aqueles que estão tentando mudar alguma coisa ou a si mesmos com um pouco menos de cinismo, e com um pouco mais de empatia.

Na minha bolsa de valores particular, um brigadeirinho de empatia está valendo mais do que todo um bolo de noiva de cinismo e gozação.

A música flutuante do Brad Mehldau trio (BMW Jazz Festival, São Paulo, 08/06/13)

Eu não poderia deixar de comentar aqui o quanto foi especial o show do Brad Mehldau Trio no sábado. Eu achava que o pianista estava em seu auge do auge ali na época dos Art of the Trio vol. 4 ou 5. Essa impressão se confirmou quando Jorge Rossy deixou a banda, dando lugar ao Jeff Ballard; lembro bem da sensação de ouvir o começo de Day is Done, primeiro disco com Jeff Ballard na banda, e imediatamente desgostar do timbre dos pratos utilizados, metálicos demais para o meu gosto.

Poucas coisas são melhores do que se descobrir errada a respeito de música e a respeito do seu próprio gosto. De fato, eu tinha razão que as artes do trio 4 e 5 mostravam Brad Mehldau em seu auge. Mas eu estava completamente errada em não considerar que uma nova fase ainda mais incrível estava por vir – e que Jeff Ballard faria parte dela.

A música que o trio apresentou no sábado foi leve, levíssima – e, ao mesmo tempo, sugeria uma densidade e uma profundidade abissais. Imagine uma imensa e bem estruturada embarcação de papel singrando pelo mar, imponente e leve, monumental e, apesar de feita de papel, nada frágil. A música do Brad Mehldau trio é assim; ouvi-la é embarcar nesse navio, com disposição para viajar.

A principal característica deste grupo é sua peculiar apropriação do tempo, e isso tem tudo a ver com a sensação de leveza que descrevi acima. O trio parece tocar não dentro do tempo, mas acima ou em torno dele, criando a ilusão de uma completa ausência de esforço por parte dos músicos – é como se eles não estivessem tentando soltar a música das amarras do tempo, sendo que, paradoxalmente, estão fazendo exatamente isso. Não foi por acaso que escolhi a metáfora da embarcação: a música me passa a sensação de flutuar no espaço, oferecendo-se de forma quase disciplicente ao ouvinte. Essa flutuação, por sua vez, remete à viagem de que falei acima – pode ser que seja apenas uma predisposição minha, mas prefiro acreditar que esta predisposição casou-se com o que a música oferecia de forma objetiva: a possibilidade de percorrer estados emocionais distintos, não se fixando por muito tempo em nenhum deles. Ora eu me deixava surpreender e emocionar pela riqueza e a exuberância de uma frase do piano, ora me deixava capturar pelo timbre do baixo que tanto me agrada, ora me surpreendia com algum acorde diferente introduzido em “And I Love Her” (e como foram bem colocados, esses acordes). Mas eu prestava atenção a um aspecto aqui, outro ali, descompromissadamente, sem a afobação de querer captar e entender tudo, mas apenas me abrindo à possibilidade (e ao desejo) de ser atravessada pelo que flutuava no ar.

E acho que essa minha falta de afobação enquanto ouvinte não surgiu do nada, mas foi reflexo da completa falta de afobação e desespero do próprio grupo. Como é possível swingar tanto sem nenhuma pressa? Eu não sei, mas o Brad Mehldau Trio sabe. Eles fizeram uma música madura, tranquila, sem nenhum exibicionismo, nenhum mamãe-olha-como-eu-toco. Repare que tranquilidade, aqui, não é sinônimo de andamento lento. Eles podem tocar no andamento rápido que for, que a música permanecerá tranquila.

Uma associação óbvia que me ocorre ao que venho descrevendo até aqui é o zen – pareceu-me a coisa mais natural do mundo ver Brad sentado em posição de lótus durante um solo de bateria, muito embora, agora que estou parando para pensar a respeito, não me lembro de jamais ter visto outro pianista de jazz nesta posição durante uma apresentação. Só que, sobre o zen, sei apenas o que o senso comum dita. Sobre a Psicanálise, sei um pouco mais, e é a ela que vou recorrer para caracterizar minha experiência de ouvinte: a música do Brad Mehldau trio deixou-me em estado de atenção flutuante, sem memória (rapidamente me esqueci de todas as atribulações sofridas para chegar ao HSBC – o trem atrasou, o táxi demorou, chateações desse tipo) e sem desejo (não me peguei naquele estado “toca Raul!!!” que tão frequentemente nos acomete quando estamos no show de um artista cuja obra conhecemos bem). Este é o tipo de escuta que Freud considera necessária a um analista em sua relação com o analisando: idealmente, o analista deveria distribuir sua atenção de forma uniforme sobre a fala do analisando, deixando-se capturar por um aspecto ou por outro desta fala sem privilegiar nada a priori.

E foi assim que, curiosamente – esta não é uma experiência comum para mim – ouvi o Brad Mehldau Trio no sábado.

***

Alguns outros pontos que fiquei com vontade de destacar:

  • Dinamicamente, este grupo sempre esteve associado, para mim, ao mezzo forte; desta vez, porém, notei uma variação dinâmica maior, sobretudo nos interlúdios de piano solo. Pode ser que essa minha percepção tenha sido apenas fruto da excelente qualidade do som (um beijo, técnico de som); de qualquer forma, fui capaz de perceber mais contrastes – um espectro dinâmico maior parece ter sido explorado, do pianissimo ao mezzo forte.
  • Alguns músicos/grupos nos passam a impressão de transmitir a música (me refiro aqui a uma composição específica) “como ela é”, como se fossem capazes de extrair a essência musical de uma partitura. Outros parecem particularmente habilitados a transformar composições alheias em criações próprias. Brad Mehldau pertence a esse segundo grupo.
  • Meu momento preferido da noite foi “Trocando em Miúdos”, especialmente pela condução rítmica do trio – parecida com o que se ouve aqui, aqui e aqui, só que mais lento.

Olhaí olhaí freguesia

Venha experimentar essa delícia! É o puro creme do milho verde! Pamonha, pamonha, pamonha… Pamonha fresquinha!…

Oi. Vocês tão me lendo? Que bom. Nada como uma boa pamonha para chamar a atenção dos incautos.

Então, freguesia, seguinte: agora o blog é aqui. Nada mudou: este continua sendo o blog de uma jovem senhora mezzo acadêmica mezzo dona de casa que escreve uns posts metidos a engraçadinhos e uns posts metidos a reflexivos e dramáticos. Vou continuar contando dos meus passeios de metrô pela cidade, da minha busca incessante por música nova e  velha, e… Sobre o que mais eu escrevia no blog mesmo? Não estou conseguindo lembrar, mas não importa: vocês devem saber, e isto basta.

A vida, portanto, segue como dantes; a única diferença é que agora tem que digitar umas letrinhas a mais na barra de endereços — recordarrepetirelaborar.wordpress.com

Os posts antigos eu juro que, em algum dos meus muitos momentos de procrastinação que certamente hão de vir esta semana, vou salvar um a um a partir do feed do Reader. Mas não vai rolar colocá-los aqui, porque até a minha procrastinação tem limites.

Ah sim – por favor divulguem aos amiguinhos que o endereço do blog acaba de mudar. Ou não façam nada e divulguem o endereço novo daqui a umas duas semanas, quando já houver alguns outros textos além deste. Sei lá o que é melhor, marketing pessoal não é exatamente o meu forte.

Outra coisa – alguém pode deixar um comentário neste post, só pra eu ver que cara os comentários têm? Peço esse favor porque eu gostaria de me poupar daquela sensação forever-alone de comentar o próprio texto.

É isso, gente. Desculpa a propaganda enganosa das pamonhas lá em cima. Foi mal mesmo.