Eu não poderia deixar de comentar aqui o quanto foi especial o show do Brad Mehldau Trio no sábado. Eu achava que o pianista estava em seu auge do auge ali na época dos Art of the Trio vol. 4 ou 5. Essa impressão se confirmou quando Jorge Rossy deixou a banda, dando lugar ao Jeff Ballard; lembro bem da sensação de ouvir o começo de Day is Done, primeiro disco com Jeff Ballard na banda, e imediatamente desgostar do timbre dos pratos utilizados, metálicos demais para o meu gosto.
Poucas coisas são melhores do que se descobrir errada a respeito de música e a respeito do seu próprio gosto. De fato, eu tinha razão que as artes do trio 4 e 5 mostravam Brad Mehldau em seu auge. Mas eu estava completamente errada em não considerar que uma nova fase ainda mais incrível estava por vir – e que Jeff Ballard faria parte dela.
A música que o trio apresentou no sábado foi leve, levíssima – e, ao mesmo tempo, sugeria uma densidade e uma profundidade abissais. Imagine uma imensa e bem estruturada embarcação de papel singrando pelo mar, imponente e leve, monumental e, apesar de feita de papel, nada frágil. A música do Brad Mehldau trio é assim; ouvi-la é embarcar nesse navio, com disposição para viajar.
A principal característica deste grupo é sua peculiar apropriação do tempo, e isso tem tudo a ver com a sensação de leveza que descrevi acima. O trio parece tocar não dentro do tempo, mas acima ou em torno dele, criando a ilusão de uma completa ausência de esforço por parte dos músicos – é como se eles não estivessem tentando soltar a música das amarras do tempo, sendo que, paradoxalmente, estão fazendo exatamente isso. Não foi por acaso que escolhi a metáfora da embarcação: a música me passa a sensação de flutuar no espaço, oferecendo-se de forma quase disciplicente ao ouvinte. Essa flutuação, por sua vez, remete à viagem de que falei acima – pode ser que seja apenas uma predisposição minha, mas prefiro acreditar que esta predisposição casou-se com o que a música oferecia de forma objetiva: a possibilidade de percorrer estados emocionais distintos, não se fixando por muito tempo em nenhum deles. Ora eu me deixava surpreender e emocionar pela riqueza e a exuberância de uma frase do piano, ora me deixava capturar pelo timbre do baixo que tanto me agrada, ora me surpreendia com algum acorde diferente introduzido em “And I Love Her” (e como foram bem colocados, esses acordes). Mas eu prestava atenção a um aspecto aqui, outro ali, descompromissadamente, sem a afobação de querer captar e entender tudo, mas apenas me abrindo à possibilidade (e ao desejo) de ser atravessada pelo que flutuava no ar.
E acho que essa minha falta de afobação enquanto ouvinte não surgiu do nada, mas foi reflexo da completa falta de afobação e desespero do próprio grupo. Como é possível swingar tanto sem nenhuma pressa? Eu não sei, mas o Brad Mehldau Trio sabe. Eles fizeram uma música madura, tranquila, sem nenhum exibicionismo, nenhum mamãe-olha-como-eu-toco. Repare que tranquilidade, aqui, não é sinônimo de andamento lento. Eles podem tocar no andamento rápido que for, que a música permanecerá tranquila.
Uma associação óbvia que me ocorre ao que venho descrevendo até aqui é o zen – pareceu-me a coisa mais natural do mundo ver Brad sentado em posição de lótus durante um solo de bateria, muito embora, agora que estou parando para pensar a respeito, não me lembro de jamais ter visto outro pianista de jazz nesta posição durante uma apresentação. Só que, sobre o zen, sei apenas o que o senso comum dita. Sobre a Psicanálise, sei um pouco mais, e é a ela que vou recorrer para caracterizar minha experiência de ouvinte: a música do Brad Mehldau trio deixou-me em estado de atenção flutuante, sem memória (rapidamente me esqueci de todas as atribulações sofridas para chegar ao HSBC – o trem atrasou, o táxi demorou, chateações desse tipo) e sem desejo (não me peguei naquele estado “toca Raul!!!” que tão frequentemente nos acomete quando estamos no show de um artista cuja obra conhecemos bem). Este é o tipo de escuta que Freud considera necessária a um analista em sua relação com o analisando: idealmente, o analista deveria distribuir sua atenção de forma uniforme sobre a fala do analisando, deixando-se capturar por um aspecto ou por outro desta fala sem privilegiar nada a priori.
E foi assim que, curiosamente – esta não é uma experiência comum para mim – ouvi o Brad Mehldau Trio no sábado.
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Alguns outros pontos que fiquei com vontade de destacar:
- Dinamicamente, este grupo sempre esteve associado, para mim, ao mezzo forte; desta vez, porém, notei uma variação dinâmica maior, sobretudo nos interlúdios de piano solo. Pode ser que essa minha percepção tenha sido apenas fruto da excelente qualidade do som (um beijo, técnico de som); de qualquer forma, fui capaz de perceber mais contrastes – um espectro dinâmico maior parece ter sido explorado, do pianissimo ao mezzo forte.
- Alguns músicos/grupos nos passam a impressão de transmitir a música (me refiro aqui a uma composição específica) “como ela é”, como se fossem capazes de extrair a essência musical de uma partitura. Outros parecem particularmente habilitados a transformar composições alheias em criações próprias. Brad Mehldau pertence a esse segundo grupo.