A Liga do Barril

A história, como eu a lembro, é assim: P. e seus amigos, uns 15 anos de idade, picharam alguns muros, em 1969 ou 1970. Não sei se a pichação como a entendemos hoje já existia naquela época, e tampouco sei se é correto chamar inscrições a giz de pichação. O que me disseram é que os meninos escreveram “Liga do Barril” em muros do bairro, a giz. Era o nome da turma deles – e, aos 15 anos, você tem certeza de que a Liga do Barril é para sempre.

Tanto espalharam seu nome pelo bairro, que um policial viu.

Veio perguntar para os meninos que Liga do Barril era aquela.

Se eles se interessavam por política.

Se aquilo era coisa de subversivo.

A história não tem graça nenhuma, adianto desde já: o policial rapidamente se convenceu de que Barril não era um código secreto para Foice ou Martelo (“ô seu guarda, a gente só quer saber de estudar, a gente não sabe nada desse negócio de política não!”), mandou os meninos apagarem as marcas a giz, e pronto.

Graças a Deus, me contaram, não aconteceu nada demais.

Graças a Deus, ninguém ali se interessava por política.

Graças a Deus, ninguém ali era subversivo.

Tudo acabou bem. 

***

Conheço pessoas que sofreram marcas profundas da ditadura.

A minha marca foi esta outra: de giz, no muro. Apagada às pressas.

Estas foram algumas lições que a ditadura me ensinou:

Que, se você se interessa por política, alguma coisa você tem para esconder. Alguma você fez. 

Que, se você se interessa por política, você está a um passo de ser subversivo. Você é, por princípio, suspeito.

Que quem não deve, não teme – e quem não deve certamente não se interessa por política.

Quem não deve é gente que só cuida de estudar e trabalhar, e deixa o interesse pela política para os subversivos que não têm mais o que fazer.

Que um policial pode lhe perguntar, a qualquer momento, se você se interessa por política.

(Aliás, que um policial pode lhe perguntar, a qualquer momento, qualquer coisa.)

E, quando ele lhe perguntar o que quer que seja, é bom saber a resposta certa.

***

Encontrar as marcas da ditadura no Brasil é um jogo dos sete mil erros. 

Mas este não é um post sobre o Brasil – é um post sobre mim.

Em mim, a grande marca que a ditadura deixou foi esta: o aprendizado de que, no mundo, existem as pessoas que estudam, trabalham e não querem saber de política. Estas estão a salvo. Para elas, tudo acabará bem.

E existem as pessoas que querem saber de política – e não querem saber de estudar ou trabalhar. Estas são as que foram se meter onde não deviam. Se apenas tivessem se limitado a trabalhar e estudar, como fazem os bons cidadãos! Mas não: foram inventar de fazer graça.  Depois se metem em encrenca e ainda reclamam. 

*** 

O post é sobre mim, mas minha história não tem nada de especial. Esta dicotomia trabalho/estudo (gente séria e competente, bons cidadãos) x ativismo político (gente preguiçosa e/ou incompetente, que em vez de assistir aula prefere participar de reunião do C.A.; em vez de trabalhar duro, prefere ser sindicalista etc.), para citar Noel, é coisa nossa, muito nossa. Mesmo minha TL, que é decidamente esquerdista, criticou Sininho com base nesta dicotomia. Afinal, “ser cineasta” não é um trabalho de verdade, para o imaginário popular – não é como se ela fosse médica ou engenheira. Então, ela foi encaixada precisamente nesta segunda categoria: de pessoa que se interessa por política e não quer saber de estudar ou trabalhar.

E todo mundo sabe que gente assim sempre acaba se metendo em confusão.

***

Cada vez que questionamos o trabalho de Sininho, encarnamos o guarda que perguntou à Liga do Barril, talvez não com estas palavras, mas certamente com este espírito: 

Afinal, vocês são estudantes ou uns subversivos que só querem saber de política?

O Estado policial, para citar Emicida, é nóis.

*** 

O caminho em direção a um país menos escroto é árduo e incerto. Suspeito, porém, que ele inclui um importante passo: o reconhecimento das marcas que a ditadura deixou impressas em nós.

Mesmo que sejam de giz – mesmo que tenham tentado apagá-las.

Cabô o mito da cordialidade?

Olhei meio rápido para esta pesquisa e não entendi muito bem a comoção que ela está gerando. Achei que fosse apenas mais uma a confirmar aquilo que eu e você já sabíamos: que a violência lava-que-cobre-tudo no Brasil é sempre minimizada, atenuada, justificada, “mas pera lá”, “não é bem assim”, “você está exagerando”, “deixa disso”, “anistia ampla, geral e irrestrita para os assassinos da ditadura”.

Do tipo: o racismo até existe no Brasil, claro – mas não aí onde você está vendo (e sobretudo não em mim, jamais!), isso que você está dizendo é um problema socio-econômico e não racial.

Ou: alguns militares realmente torturaram durante a ditadura – mas no geral, fala sério, nossa ditadura foi uma ditabranda, poxa!

Ou: a polícia às vezes exagera na violência, é óbvio – mas esses vândalos infiltrados também fazem por merecer, né?

Analogamente, achei que, nesta pesquisa, as pessoas fossem dizer que a violência contra a mulher é errada (claro que sim!) – mas essas piriguetes também usam umas roupas enfiadas no útero que até parece que elas estão pedindo, não?

Não: aparentemente, as pessoas não acham nem mesmo que a violência contra a mulher é errada.

As pessoas – 2/3 delas – acham que “mulheres que usam roupas que mostram o corpo merecem ser atacadas”.

Deixemos as roupas de lado por um instante para ter a real dimensão do horror:

Mulheres. Merecem. Ser. Atacadas.

**

O mito da cordialidade sempre fez todo o sentido para mim; sempre informou minhas tentativas de entender quem somos. Esse “não somos racistas” / “não somos violentos” / “somos uns fofos” que recobre a abissal violência da nossa sociedade sempre foi uma característica definidora, para mim, do que é “ser brasileira”.

Mas, ultimamente… Estou com a impressão de que o tal mito da cordialidade não está se aplicando mais, viu.

Parece que o mito diz respeito a outra era. Parece que, cada vez mais, estão caindo as máscaras. Não há uma tentativa (ainda que mal-sucedida) de disfarçar ou minimizar as violências. Não há mais pudor; não há mais um ímpeto de dizer que o horror, na verdade, era outra coisa, nem-tão-horrível-assim.

É isso: parece que não há mais pudor. Ao contrário, há o *orgulho* do horror. A afirmação da violência em todo seu esplendor.

Há os adolescentes amarrados em postes. O leilão para comprar armas para atirar em índios. As mulheres que, descubro agora, devem ser atacadas.

Não estou sabendo direito o que pensar. Só sei que estou com vontade de usar shortinho e minissaia pelo resto do ano agora. Como ato político mesmo.

O Texto Imbecil de Comportamento da Semana

Acontece toda semana: de repente, a internet inteira fica tomada por um Texto Imbecil de Comportamento. Onde quer que você clique, encontrará alguém para criticar e taguear de #absurdo e #ridículo o Texto Imbecil de Comportamento – dando link para ele e aumentando a receita do jornal, é claro, porque você consegue ensinar uma pessoa a fazer cálculo integral, a fazer curativo em gato, a fazer pudim, mas não consegue ensinar esta mesma pessoa que dar o link para o Texto Imbecil de Comportamento da Semana não é exatamente uma boa ideia. Mas divago: meu ponto é que o Texto Imbecil de Comportamento da Semana está presente de alguma maneira em várias das abas do seu navegador e o jornal está feliz.

O Texto Imbecil de Comportamento da Semana difere do Texto Imbecil de Política da Semana porque sempre haverá alguém entre seus contatos permeável a estes últimos: pouco importa que Dilma Rousseff coloque o Exército nas ruas durante a Copa, para o seu tio-avô ela será eternamente a terrorista black bloc comunista dona-marta-do-petê.

Mas com o Texto Imbecil de Comportamento, ninguém é capaz de concordar ou de apreciar. Não se trata de um texto polêmico – o Texto Polêmico da Semana é outra coisa. O Texto Imbecil de Comportamento é apenas isso: imbecil. Ninguém elogiou, ninguém aplaudiu, ninguém gostou – todos compartilharam. O Texto Imbecil de Comportamento gera um sentimento ímpar de pertencimento e comunidade: se todos podemos concordar que este é mesmo um Texto Imbecil, então a humanidade não vai tão mal assim – haverá salvação para nós.

Chega o momento, então, em que você se pega querendo participar desta bonita festa promovida pelos Odiadores Oficiais do Texto Imbecil. Você também quer ler e odiar o texto, assim como todos os seres humanos normais. Você  quer mostrar que é mais inteligente que o Autor. Você quer poder exprimir seu pasmo, revolta e indignação ao constatar que o Autor do Texto Imbecil de Comportamento da Semana tem mais seguidores do que o Autor do Texto Maravilhoso sobre o Amor, a Verdade e a Vida do Ano.

Então você clica no link para o Texto Imbecil, gerando receita para o jornal.

Você lê um parágrafo.

Lê dois.

E enfim se pergunta:

Por que raios estou lendo um Texto Imbecil?

Então, de repente, pela primeira vez – aleluia! -, você larga o Texto Imbecil no meio e fecha a aba.

***

É difícil, gente, eu sei. Tenho anos de procrastinação internética nas costas e é a primeira vez que consigo interromper a leitura de um Texto Imbecil de Comportamento depois de meros dois parágrafos. Estou contando isso não para me gabar (mentira, estou sim – beijinho no ombro, etc.), mas fundamentalmente para lhes assegurar de que, se eu consegui, vocês também conseguem.

Para comemorar este glorioso momento de arremesso-da-cocaína-pelo-ralo, compartilho agora o Texto Maravilhoso, senão do Ano, certamente desta Semana.

Passando cheque de papel sulfite

Chegaram-me notícias de que uma criança conhecida minha, de dois anos e pouco, pediu à mãe, numa fala inédita, que passasse o cartão. Desnecessário dizer que elas estavam em uma loja de brinquedos e a mãe dissera que não tinha dinheiro para comprar a nova Barbie Borboleta.

Eu era um pouco mais velha do que essa criança quando meu pai me explicou o conceito de cheque pela primeira vez. Claro que na mesma hora fiz-lhe um cheque de um milhão de cruzeiros (ou seriam cruzados?), para que ele investisse na empresa cuja situação financeira era motivo de preocupação constante.

Nem eu nem a menininha da Barbie fizemos qualquer coisa de especial. As crianças relativamente bem de vida aprendem muito cedo que dinheiro, no mundo, é o que não falta – só que às vezes calha de ele não estar disponível justo no momento em que mais precisamos dele. Para esses momentos, felizmente, os adultos inventaram dispositivos mágicos conhecidos como cheque (para as ex-crianças) e cartão (para as crianças atuais). O cheque e o cartão restauram a ordem do mundo, repondo o dinheiro provisoriamente faltante e sustentando a existência de Barbies e empresas familiares, conforme o caso.

Mas então cresci e percebi que meu pai não pôde sacar o cheque? A menininha crescerá e perceberá que não adianta ter cartão quando não se tem dinheiro?

Mais ou menos.

Algumas crianças realmente percebem e aprendem. As únicas que realmente aprendem que o dinheiro é um recurso limitado que não pode ser evocado magicamente por uma varinha de condão são aquelas que não dispõem de um banco familiar ao qual possam recorrer em caso de necessidade.

Outras, entre as quais me incluo, nunca aprendem efetivamente que o dinheiro pode acabar e, neste caso, não há cheque de um milhão que resolva. Não, não estou falando de deficiências cognitivas graves: sei muito bem a diferença entre um cubo card e um real, muito obrigada. Estou falando de outra coisa. Estou falando que, no meu mundo, o dinheiro nunca vai de fato acabar completamente. Mesmo que eu decida “viver uma vida mais livre”, largar o doutorado e fazer um mochilão pelo Tibet, nunca realmente correrei o risco de passar fome por falta de dinheiro. Sempre há familiares para quem poderei ligar. E o fato de que essa possibilidade existe é um acontecimento importante por si só – ela não precisa se materializar para produzir efeitos*. Eu posso ir para o Tibet e passar fome porque gastei todo meu dinheiro, claro. Mas sempre terei passado fome porque escolhi não pedir ajuda para ninguém. Eu poderia simplesmente ter pedido: passa o cartão, vai.

A fome – talvez o significante máximo da falta de dinheiro em nossa sociedade**, o que por si só já revela muito sobre nós: estamos convencidos de que só é possível se alimentar com coisas compradas no supermercado –, portanto, não me é uma possibilidade psicologicamente real.

A menina que fez o cheque de um milhão para o pai ainda está bem viva em mim – e acredita, goste eu disso ou não, que o pai sempre poderá fazer um cheque de um milhão para ela.

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Agora imagine como seria se todos, e não apenas alguns, tivessem a mesma relação com o dinheiro que fui ensinada a ter?

Indo um pouco além – como seria se todos tivessem uma relação com o dinheiro exatamente como a da menina de 2 anos para quem basta passar o cartão, ou da menina de 5 para quem a solução para todos os problemas passa por um cheque de um milhão rabiscado em papel sulfite? Já imaginou?

Substitua “dinheiro” por “água” e não será preciso imaginar mais nada. Substituindo “dinheiro” por “água”, você terá o Brasil.

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Tem as pessoas que insistem em lavar o carro em plena seca da Reserva Cantareira. Estas, é verdade, estão bem próximas do funcionamento mental das crianças para quem o dinheiro é mágico. E tem as pessoas que, como eu, até pararam de lavar o carro e se assustam quando leem que o nível está abaixo de 15% – mas se tranquilizam involuntariamente quando leem que esses 15% representam alguns trilhões de litros de água.

(Não sei vocês, mas eu tenho muita dificuldade de acreditar, acreditar de verdade mesmo, que qualquer coisa que chegue a “X trilhões” possa um dia acabar.)

Estas pessoas estão muito mais próximas do funcionamento mental das crianças – e do cara que lava o carro – do que parece. Para início de conversa, elas não estão fazendo racionamento de água (deixar de lavar o carro não é fazer racionamento, sinto muito – é apenas bom senso).  

Só vou acreditar que estamos realmente preocupados com a Reserva Cantareira quando começarmos a armazenar a água do enxágue da máquina de lavar.

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Para entender nossa (desastrosa) relação com a água, vale a pena olhar para a (desastrosa) relação dos índios com a cachaça. Cito Eduardo Viveiros de Castro:

“O capitalismo apresenta aos índios uma coisa que eles nunca tiveram: o infinito mercantil. Os objectos não acabam nunca. Você tem uma quantidade infinita de cachaça. É como se chegassem aqui marcianos que nos dessem soro da vida eterna. Os índios não entendem e consomem, consomem, consomem. Eles produziam pouco para ter tempo livre. O que acontece agora é que continuam produzindo pouco mas os produtos chegam em quantidade infinita.”

Impossível não lembrar da marchinha de Carnaval:

“Você pensa que cachaça é água? / Cachaça não é água não”

Não, não pensamos que cachaça é água. Pensamos que água é cachaça. Consumimos água como se ela fosse um bem eterno e infinito. O capitalismo é uma espécie de cristianismo da matéria, no fim das contas. O cristianismo nos ensina que o espírito é eterno – o capitalismo, que os recursos naturais são inifinitos, eternamente à nossa disposição.

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O engraçado é que o senso comum atribui o pensamento mágico aos índios, um bando de gente doida que faz dança da chuva. Nós, não: somos lógicos e racionais, sabemos que a chuva resulta da evaporação da água.

E nós, que somos tão lógicos e racionais, temos como “plano C” para a Reserva Cantareira (pois o B, que é extrair a raspa do tacho da reserva, já está sendo colocado em prática) a estratégia de torcer para que chova.

Não é preciso conhecer o que quer que seja sobre os índios para notar que, quando o assunto é água – e recursos naturais de forma geral –, quem tem pensamento mágico somos nós, não eles.

Nós é que tratamos os recursos naturais magicamente, assim como as crianças tratam o dinheiro – como se sempre fosse haver mais e mais recursos nalgum lugar, bastando passar o cheque ou o cartão para que o dinheiro chegue na nossa conta e para que a água jorre na nossa torneira.

O alcoolismo entre os índios, se entendi bem, deve-se em larga medida à introdução de um objeto infinito em um mundo até então povoado por recursos limitados.

Parece-me então que os índios, mais do que nós, sabem que os recursos naturais acabam – daí o choque diante do “recurso infinito” que é a cachaça. Para nós não-índios, a Terra continua existindo em um plano (na acepção geométrica do termo), sem contornos e sem limites. Não existe o conceito de “água acabar”. Existe o conceito de “eu tô pagando”. Se estou pagando a conta direitinho, então a água tem que vir.

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Foi morando nos Estados Unidos, em uma casa cujo banheiro não tinha ralo, que aprendi que era possível lavar todo um banheiro com apenas meio balde d’água.

Se você morou no Brasil a vida inteira, posso imaginar o que você está pensando. “Ah, vá! Gringo é tudo porco. Duvido que ficava limpo de verdade. Banheiro limpo é banheiro em que você despeja três, quatro baldes d’água – chuááá!”. 

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Outro dia a síndica do meu prédio conclamava os condôminos, por meio de uma nota afixada no elevador, a poupar o “precioso líquido”.

Eu ri, claro. “Precioso líquido”, jura? Menos, né?

Um beijo, querida síndica. Eu sou uma idiota.

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Sempre que surge uma ameaça de racionamento de água, fugimos dele como se ter menos água para lavar o banheiro fosse uma tremenda humilhação. E mais – pensamos em um eventual racionamento em termos de risco eleitoral. “Vai pegar mal pro Alckmin, vai pegar mal pra Dilma se rolar durante a Copa.” Não pensamos no consumo reduzido de água como um dado objetivo em um mundo onde os recursos são limitados.

Quando ameaça faltar água, nossa reação – a começar pelo governo – é semelhante à que eu tive quando meu pai me explicou a precária situação financeira de sua empresa. A resposta à crise é passar um cheque de um milhão em papel sulfite acreditando que será suficiente.

Acho que nada se parece tanto com o cheque de papel sulfite das crianças quanto a proposta de, em vez de economizar água, ir buscá-la mais longe. É o mesmo princípio nos dois casos: o recurso (dinheiro / água) não está aqui agora, é verdade, mas tem mais lá longe! Basta passar um cheque / ir lá buscar.

Que os deuses indígenas tenham piedade de nós.

 

* Mais ou menos como um relacionamento que se coloca a priori como aberto: antes mesmo que qualquer pessoa do casal saia com outros parceiros, essa relação já é necessariamente diferente de uma outra em que tal possibilidade é um tabu. A possibilidade, independentemente de sua concretização, institui uma realidade outra.

** Lembremos que o Programa Bolsa Família, de distribuição de renda, é sucessor do Programa Fome Zero.

Não desenhe

Não, não quero que você desenhe, obrigada. Por favor, não perca seu tempo. Se não entendi o que você comunicou através de palavras, não é um infográfico da Folha que vai me ajudar a entender. Nunca consegui (captar? sacar? apreender?) infográfico sequer. Aliás, taí: qual o verbo apropriado para a interação com infográficos? Lemos livros, assistimos a filmes, ouvimos música – e com infográficos, é para fazer o quê? Talvez a Folha espere que, só de olhar para eles, eu adquira subitamente uma profunda compreensão do mundo e da vida – assim como você acha que eu magicamente hei de entender tudo se você apenas desenhar. Mas diagramas, setinhas, quadradinhos e circulinhos não são mais poderosos, creia, que as palavrinhas que pululam das páginas dos dicionários. Ao menos não para mim. Se não entendi, em vez de desenhar, por favor explique tudo mais uma vez – desta nova vez, preferencialmente, usando ainda mais palavrinhas, concatenadas em ainda mais frasezinhas e ainda mais paragrafinhos. Quanto mais palavrinha, melhor. Palavrinhas sucedem-se uma-após-a-outra nas frases e isso me é sumamente reconfortante – pois sua explicação pode ser sobre a reprodução dos sacis ou sobre o quadrado de gauss, não importa; o que importa é que sempre saberei que o começo da sua explicação está láááá no alto da página à esquerda em letra maiúscula, e o fim está ali na última palavra que você colocou antes do ponto final do texto (ou de interrogação, se você for metido a espertinho). E, olha que demais – se, no meio da sua explicação, eu ficar com uma dúvida sobre a reprodução dos sacis, sabe o que vou fazer? Vou voltar para a palavra láááá no alto da página à esquerda e ler tudo de novo. E de novo e de novo e de novo até eu entender, ou perceber que o quadrado de gauss realmente não é para mim. Mas um desenho, não faço ideia – não sei onde começa nem onde termina. Eu sei muito bem quando terminei de ler um texto (e não estou falando de filosofices “os textos nunca terminam de serem lidos”, “1968 foi o ano que nunca acabou”, não, filho, estou dizendo que quando chegou aquele último fatídico ponto final ou, se você for espertinho, de interrogação, eu vou poder dizer, num sentido muito imbecil, que efetivamente li aquela bagaça). Mas eu nunca sei quando terminei de olhar para um desenho. Ou um infográfico. Não sei onde é para olhar primeiro, não sei o que é importante e o que é meramente acidental. Não sei se você pintou essa setinha de rosa e aquela de azul porque assim ficou mais bonito ou se com isso você está querendo denunciar, através das cores, a caretice dos papéis de gênero na sociedade. Eu não sei, entende? E seria tão fácil saber. Bastaria você enunciar: “estou criticando a caretice dos papéis de gênero na sociedade”, pronto: foram necessárias dez palavrinhas, apenas dez, dentre as centenas de milhares que tio Aurélio e tio Antônio compilaram com tanto carinho para nós. Dez palavrinhas e ufa, você não precisa desenhar nada. Basta dizer.

Entendeu ou quer que eu reescreva?

Garis que escrevem bem

Li a carta da comissão de greve dos garis do Rio de Janeiro (aliás – leiam-na).

Minha primeira reação não foi de apoio às justas reivindicações.

Minha primeira reação foi de comentarista de portal.

Minha primeira reação foi “nossa, até que a carta tá bem escrita para um bando de garis!”

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Então me lembrei de outra primeira reação.

Minha primeira reação após as primeiras páginas de Disgrace, do escritor sul-africano J.M. Coetzee (aliás – leiam-no), não foi de nocaute por tantas palavras dispostas em ordem tão perfeita e precisa.

Minha primeira reação foi “nossa, existem universidades na África!”

Minhas primeiras reações, como se vê, não costumam ser exatamente perspicazes.

Mas elas têm a vantagem de ser tremendamente instrutivas.

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Lembro direitinho das ameaças feitas a uma criança da minha família que perigava repetir de ano. “Se não estudar, vai virar gari!” Sim, a criança repetiu de ano. Não, ela não virou gari. Minha família é de classe média, afinal.

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Lembro igualmente bem da primeira vez que fui para os Estados Unidos – ou melhor, para a Disney, como toda boa criança paulistana de classe média – e fiquei escandalizada com relatos de americanos que achavam que vivíamos na floresta amazônica disputando espaço com os macacos.

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Eu gostaria de acreditar que os macacos da floresta são um detalhe meramente acidental nestas minhas associações desconexas.

Mas a lembrança de outro acontecimento desta semana – o árbitro negro que foi chamado de macaco e ganhou bananas de torcedores – me obriga a reconhecer que não.

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A ideologia da meritocracia não subsiste no Brasil sem o racismo. Porque para acreditar que o patrão é aquele que estudou e se esforçou mais e o empregado é aquele que estudou e se esforçou menos, é necessário acreditar que, de modo geral, brancos estudam e se esforçam mais do que negros.

É necessário acreditar que negros estão mais próximos dessa coisa instintiva, primitiva, natural, animal, passional, corporal, básica, selvagem. Essa coisa-instintiva-e-selvagem característica dos negros, muito mais próxima dos macacos que dos seres humanos, certamente não combina com universidades nem com “profissões em que se usa o cérebro” (como se, aliás, de corporal o cérebro nada tivesse).

É necessário acreditar nessa “corporeidade” intrínseca dos negros, e acreditamos – haja vista minha primeira reação à carta dos garis (“ora bolas, eles usam o cérebro!”). Minha primeira reação é resultado de um complexo conjunto de crenças pré-conscientes que se encadeiam: negros são mais “corporais” que “cerebrais” – logo, negros não gostam de estudar – logo, negros estudam menos – logo, negros viram garis, que não precisam usar o cérebro.

A perversidade está em que acreditamos nisso tudo (tanto que lançamos a ameaça “se não estudar vai virar gari!” com toda a sinceridade) ao mesmo tempo em que temos plena e absoluta certeza de que nunca, jamais, sob nenhuma hipótese, um membro de nossa família branca e de classe média virará gari se repetir de ano.

As duas crenças pré-conscientes – da meritocracia e da superioridade intelectual intrínseca dos brancos – jamais entram em choque. Isso é ideologia. A ideologia é continuar acreditando na meritocracia mesmo quando a realidade dá incontáveis exemplos de gente que foi mal na escola e nem por isso virou gari –  gente de uma cor e de uma classe social bem específicas.

(A propósito, minha mãe repetiu de ano. Mais de uma vez. Virou professora de francês.)

Vale repetir que estou falando neste texto de crenças pré-conscientes – coisas nas quais acreditamos sem nem saber que acreditamos. É claro que todos sabemos que a capacidade intelectual nada tem a ver com a cor da pele ou quaisquer outras características físicas. Jamais afirmaríamos o contrário. Estamos perfeitamente cientes de que não faz sentido associar inteligência e raça. Mas estou falando aqui justamente de coisas das quais não estamos cientes. De dados e informações que contextualizam nossa visão de mundo sem nos darmos conta. Dados, sensações, percepções que compõem o pano de fundo sobre o qual o mundo se destaca. Já imaginou a bagunça que nossa vida seria, pergunta Merleau-Ponty, se conseguíssemos ver, como coisas, os intervalos entre as coisas?

***

Formatura de um curso de elite de uma faculdade particular idem em São Paulo.

Estava tudo muito bom e muito bonito – muita alegria e muita justa comemoração, muita caipiroska de fruta e muito sertanejo universitário animando os formandos e seus convidados.

Então, faço o seguinte comentário:

– Duzentos e tantos formandos. Nenhum negro – e tomo mais um gole da minha caipiroska.

Nesse momento, eu vi, nos olhos do meu marido, o intervalo-entre-as-coisas tornar-se coisa.

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Nossas crianças de classe média aprendem, em sala de aula, que inteligência não se mede pela cor da pele. Aprendem direitinho, com professores de história e biologia.

Professores brancos.

Aí vem a hora do recreio e faxineiros recolhem os restos dos lanches de nossas crianças.

Faxineiros negros.

O que nossas crianças realmente aprendem? 

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Como des(cons)truir nossa crença pré-consciente de que, no-fundo-no-fundo, brancos são inteligentes e negros são burros?

Eu tenho um palpite. Não se des(cons)trói uma crença pré-consciente argumentando que, veja bem, tal crença é um absurdo, não faz sentido, está errada. Afinal, isso já sabemos.

Uma crença desse tipo só é des(cons)truída quando se coloca outra em seu lugar. Outras crenças, outros valores – para competir com as crenças e valores já arraigados.

É perfeitamente possível. É o que faz a carta dos garis. Garis que se organizam e escrevem um texto contundente e imprescindível. 

***

Por fim, é preciso sempre lembrar que os garis não escreveram a carta para educar a nós, pobres-de-nós que temos crenças tão infelizes arraigadas. Porque se encararmos a carta exclusivamente como um instrumento educativo para nós-que-somos-racistas-apesar-de-não-querer, este vira um post-Riachuelo: mãos negras, mais uma vez, servindo ao bem-estar – no caso, à aprendizagem – dos brancos.

É preciso insistir e reforçar: os garis escreveram a carta porque – barata no pão; leite estragado; oitocentos míseros reais.

E aí, caro leitor-herói que chegou até aqui, a questão é infinitamente mais simples do que as complexas reflexões sobre crenças pré-conscientes que tentei desenvolver.

A questão é se você acha que uma pessoa que recebe: 1) barata no pão; 2) leite estragado; 3) oitocentos reais por mês deve se contentar com um reajuste de 9% e voltar feliz da vida para o trabalho.

Ou se você acha que esta pessoa deve continuar lutando.

#TodoApoioAosGaris