De como nasce um sonho musical

Restos diurnos:

1. Anteontem: comprei ingressos para o show de lançamento do disco novo de Guinga;
2. Ontem: no salão de beleza, à tarde, passava uma novela no vale a pena ver de novo; tocou uma música de Lenine;
3. Hoje: conversei sobre Lacan no tuíter.

Sonho-resultado:

Guinga + Lenine + baião de Lacan = MINGUS SAMBA na cabeça a manhã toda

Bom dia :-)

I do

New Orleans. Dez anos do Katrina hoje. Cinco que voltei. Esses dias terminei de assistir a Tremè, a série do David Simon sobre a reconstrução da cidade. A última temporada se sobrepõe ao começo da minha estada lá – fim de 2008, eleição do Obama. Tenho uma série de críticas pedantíssimas e pentelhérrimas à série que graças a deus não sou obrigada a desenvolver aqui. Só para que se tenha uma ideia: acho os personagens rasos, as histórias arrastadas, a série toda meio panfletária; os personagens parecem meros ventríloquos através dos quais se conta a história de New Orleans. E no entanto…

E no entanto: que belíssimo tributo a New Orleans, com todos as suas lindezas, todos os seus horrores. E que delícia para quem já esteve lá, ainda que por pouco tempo como eu. Todo episódio tem algum restaurante, algum bar, algum músico que conheço ou conheci. Fico empolgadíssima cada vez que reconheço um desses lugares ou pessoas. Fico morta de vergonha quando aparece algo que não cheguei a conhecer – nunca fui ao Preservation Hall, por exemplo, e não foi por falta de convite. Fico toda esnobe e superior com relação ao que a série deixou de mostrar – como que não mostraram a Sasha Masakowski, por exemplo, uma das cantoras de jazz mais interessantes da atualidade?

Que vazio enorme, desde que a série acabou. Desde que a série acabou, tenho ouvido John Boutté quase todos os dias. Fiz spaghetti com camarões semana passada. E esta semana fiz salmão na frigideira aproveitando a deixa de uma das personagens mais legais, a chef Desautel. Na segunda temporada, ela vai para Nova York e começa trabalhando em um restaurante com um daqueles chefs super caricaturais de tão mal-humorados. Ela leva uma bronca porque está se apressando na hora de preparar o salmão. Há que “listen to your fish”, segundo o chef clichê. Não há que se apressar. E a câmera se demora na frigideira, na manteiga derretendo, no salmão mudando de cor. Então, esta semana, eu ouvi meu próprio salmão.

Acho que meu arco narrativo preferido é o do trombonista que vira professor de música numa escola. Ele não quer o emprego, a princípio, mas acaba aceitando por pressão da mulher – uma personagem que aparentemente só está ali para mandar o marido ir trabalhar (eu disse que tinha críticas pedantes). Então o marido vai. E começa numa atitude de “this is only my day job”, eu não sou professor, eu sou músico, sou artista, tenho minha banda, tocar em gigs é meu verdadeiro trabalho.

E então em algum momento ele sente que falhou com os filhos. Que nunca ensinou música a eles e que fracassou em lhes transmitir a herança musical da família. Os filhos, de um primeiro casamento, são adolescentes; do segundo, ele tem uma filha ainda bebê. Aí você imagina que ele irá ensinar algum dos filhos, ou todos, a tocar um instrumento. Mas não: o que acontece é que ele se torna, de verdade, um professor. Ele passa a tradição adiante – não para os filhos, mas para os filhos dos outros; e missão cumprida. É o arco mais bonito de todos; é o que mostra o que significa ser parte de uma comunidade. Não importa que os alunos não sejam seus filhos; eles são de New Orleans, e isso basta.

Hoje o Obama foi lá. Fez um discurso lindo, como sempre. Citou a Rebirth, Dr. John, Trombone Shorty.

O primeiro episódio de Tremè se chama Do You Know What It Means… O último, … To Miss New Orleans.

É uma música que gosto de ouvir e mais ainda de cantar. Gosto principalmente da segunda metade do B (“I dream about magnolias…”), que eu sempre acho que vai se transformar em Angel Eyes (“have fun you happy people…”).

É sobretudo uma música à qual sei exatamente o que responder.

5 discos de 2013

Dois mil e treze foi um ano em que não ouvi muita música, então estou correndo atrás agora daquilo que passou batido ano passado – e não é que estou descobrindo que o ano passado foi um ano excelente para o jazz? Queria falar sobre cinco imensas, maravilhosas descobertas:
 
Gerald Clayton – Life Forum. Se quiser me dar um voto de confiança e guglar apenas um desses cinco discos que estou listando, esse é o cara. Estou gostando mais até desse disco do que do fabuloso Black Radio do Robert Glasper, apesar de (talvez justamente por?) não ser tão inovador quanto. Robert Glasper está a meio caminho entre o jazz e o R&B, revigorando, com isso, ambas as tradições; Gerald Clayton é mais propriamente um pianista de jazz, e principalmente compositor e arranjador. As 12 composições são suas, para formações diversas que incluem, além da seção rítmica, trompete (Ambrose Akinmusire), saxofones (Dayna Stephens e Logan Richardson) e vozes (Gretchen Parlato e Sachal Vasandani) (mas nem todos esses instrumentos aparecem em todas as músicas). Os cantores dão um colorido lindíssimo ao disco (inclusive esse moço Vasandani é o maior e melhor herdeiro do Chet Baker que já ouvi, guglem-no), os arranjos para metais e vozes são um desbunde, os improvisos todos dão vontade de decorar. É um disco de arranjos bem estruturados, com bastante espaço para improvisação – e acho que é por isso (além de algumas combinações timbrísticas, tipo uma melodia tocada por piano e trompete em uma região bem aguda e a condução da bateria em “Some Always”) que o disco me lembra um pouco o Pat Metheny Group dos anos 2000, só que mais rico composicionalmente e com uma sonoridade mais acústica (i.e. em vez de guitar synth, temos um trompete de verdade). Deixei para falar no fim sobre a primeira faixa, em que Gerald Clayton cria uma trilha sonora para um texto recitado pelo poeta Carl Hancock Rux – é um jeito brilhante de dar o tom do disco inteiro, com música e palavras, já nos primeiros compassos. É um disco que realmente merece ser ouvido inteiro – recomendo, então, começar a audição pelo começo.
 
Kendrick Scott Oracle – Conviction. Kendrick Scott lança mão do mesmo recurso usado por Gerald Clayton em Life Forum na primeira música: ele compôs música de fundo para uma oração – “Lord, make me an instrument of thy peace” -, que introduz de cara a vocação espiritual do disco. Kendrick Scott é baterista, mas este graças a deus não é um disco de baterista, e sim de compositor: impossível não lembrar, então, do outro grande (maior, eu diria) baterista-e-compositor do-mundo-e-do-universo de-todos-os-tempos, Brian Blade. Acho que a influência (apesar de ambos serem contemporâneos) da Brian Blade Fellowship sobre a Kendrick Scott Oracle é fato tão consumado que em “Liberty or Death”, por exemplo, não se trata nem de influência mais, e sim de um tributo escancarado mesmo, quando a guitarra se une ao clarinete baixo (aos 2:00 cravados). Mas, de modo geral, a Oracle é mais pop que a Fellowship – o disco tem duas lindas canções pop cantadas por Alan Hampton, que é um cara que não sei como não tem um disco solo até hoje. Eis aqui a primeira (e deliciosa) dessas canções.
 
Dayna Stephens – I’ll Take My Chances. Este é um disco da mesma “prateleira” que o do Gerald Clayton, até porque metade da banda se repete: em ambos, temos Dayna Stephens no sax tenor, Gerald Clayton no piano e hammond, Joe Sanders no baixo. A diferença maior de sonoridade é que aqui não há trompete e em vez da Gretchen Parlato temos a Becca Stevens, naquela que já é a minha versão preferida de Prelude to a Kiss (até falei sobre ela outro dia). Se você deu aquela chance ao Gerald Clayton e gostou, o próximo disco que você vai adorar ouvir é este – deixo o link também para o projeto atual do DS, que baixei mas ainda não ouvi.
 
Joshua Redman – Walking Shadows. Então você vai me perguntar como é que uma pessoa que supostamente gosta de jazz não ficou nem sabendo do disco novo do Joshua Redman no ano passado. E eu tenho uma teoria para isso. A teoria é que, como esse é um disco sax-com-cordas, os críticos reviram os olhos só de pensar no conceito (“musiquinha dos Beatles versão sax com violininhos ao fundo, com pouca ou quase nenhuma improvisação? NEXT”), e sendo assim o disco não entrou em nenhuma lista de melhores do ano em dezembro e não fiquei sabendo dele. Mas pode ser que eu esteja simplesmente projetando uma reação que foi a minha: afinal, convenhamos, que preguiça dum músico famoso que nesta altura da carreira e da vida escolhe regravar Beatles com orquestrinha em vez de desbravar novos territórios. Mas aí ouvi o disco, e minha conclusão imediata foi que sou uma idiota preconceituosa – por mais que o disco tenha sido feito no padrãozão mais batido que há 1) que mal há nisso se ele já começa com uma versão de The Folks Who Live on The Hill que mostra quem é que manda no mundo do saxofone atualmente 2) Wes já gravou esse tipo de disco pop com orquestra cinquenta anos atrás com lindos resultados 3) se tem uma pessoa que pode fazer isso dar certo é mesmo o Joshua Redman, ainda mais se assessorado pelo Brad Mehldau. Ajuda também o fato dele ter escolhido para o repertório 3 dos meus standards preferidos – além de The Foks, Lush Life e Easy Living.
 
Leszek Mozdzer, Lars Danielsson e Zohar Fresco – Polska. Aqui entramos em outra prateleira, outro tipo de música, outra categoria. O jazz nórdico é uma das paixões da minha vida, mas esse disco não é exatamente (ou melhor: não é apenas) o que normalmente eu espero dos discos suecos e poloneses que eu adoro, porque a percussão é do Oriente Médio (!) – não só os instrumentos (cujos nomes obviamente desconheço) como alguns padrões rítmicos me lembram bastante os que se ouvem nos discos do Avishai Cohen e do Shai Maestro, por exemplo. Guglei o percussionista Zohar Fresco e ele é israelense de pais turcos (o que fez todo o sentido). Não é um disco de composições fortes, eu acho, mas é todo uniformemente bonito – para alguns, talvez, soe “bonito” e “agradável” demais, reconheço. Mas sou suspeita mesmo para falar: absolutamente tudo em que Lars Danielsson está envolvido me interessa – e acho que você bem que podia se interessar um pouquinho também.

Last Dance – Keith Jarrett & Charlie Haden

Este é o segundo disco que sai de uma mesma sessão de gravação: uns anos atrás, Keith Jarrett chamou Chalie Haden para gravar uma batelada de standards em seu estúdio caseiro, e as horas de gravação renderam Jasmine, de 2010, que não me empolgou muito, e Last Dance, lançado há poucos dias, que foi paixão à primeira audição. Estava aqui pensando por que a primeira seleção de músicas não me disse muita coisa e a segunda foi frexada no coração ao primeiro acorde, e a resposta me parece bem simples: o repertório. Com exceção de For All We Know e Body and Soul, eu não conhecia direito (ou não conhecia, ponto) as músicas de Jasmine, enquanto que em Last Dance quase todas são canções eu sei de cor. E acho que esse é um disco tão íntimo, acolhedor, familiar, que conhecer as canções faz toda a diferença: é a diferença de, no primeiro disco, sentir-se uma mosquinha intrusa na sala de gravação e, no segundo, uma pessoa da família que foi convidada a entrar na sala e se esparramar no sofá enquanto a música acontece.

E como acontece. Last Dance é um disco de velhos que graças a deus não precisam provar para a mãe ou a namorada que sabem tocar seus instrumentos. É um disco relaxado, despretensioso, em que a beleza está nos detalhes, como na incrível capacidade do Charlie Haden de soltar cada um de seus buuuums no momento preciso, e nas músicas em que Keith Jarrett se atém por mais de dois compassos à melodia da partitura. É lindo o ‘Round Midnight que eles fazem, em que a melodia custa a aparecer, mas neste disco gosto mais ainda (por ser mais incomum) quando Keith Jarrett sai tocando como se estivesse lendo a melodia diretamente do Real Book, porque aí cada pequena inflexão dinâmica, cada pequena notinha que ele atrasa ou adianta, ganha imensamente em expressividade e força. Neste ponto, em muitos momentos o disco me lembrou o disco de piano solo The Melody at Night, With You, também gravado em casa, em que ele estava reaprendendo a tocar piano e o resultado é de uma simplicidade pungente. Em Last Dance também tudo é muito simples – e, claro, nada é fácil. É difícil pensar em outros dois músicos desse nível dispostos a gravar um disco tão isento de exibicionismos.

E então, claro, tem a improvisação, tem a graça dos grunhidos do Keith Jarrett, tem a surpresa dele próprio com o que vai encontrando pelo caminho. Eu traduziria muitos desses grunhidos como “uia, olha só o que eu achei aqui”, e acho de uma generosidade comovente que esses momentos espontâneos de pura surpresa sejam compartilhados conosco.

O jazz, para mim, é uma música da generosidade. Em primeiro lugar, porque a música só acontece quando um músico tem a generosidade de ouvir o outro. Em segundo, porque os músicos precisam ter a generosidade de compartilhar com o ouvinte um processo criativo que pode ser cheio de hesitações, de problemas, de ruídos (de grunhidos).

Tem esses sites que permitem aos músicos recolher contribuições dos fãs para financiar seus próprios discos. Na maioria deles, pagando pelo disco que será gravado, você também ganha acesso aos “bastidores”, por assim dizer: videozinhos mostrando os ensaios, entrevistas com os músicos, etc. Vende-se a ideia de que, nesses projetos, você ganha não só o produto como também o processo de criação de produto. Pois bem: minha sensação é de que, no jazz, o processo é o próprio produto. Longa vida aos videozinhos de bastidores, claro, mas o processo que realmente importa estará no disco. A essência do jazz, para mim, é essa colaboração generosa entre os músicos – e destes com os ouvintes.

Keith Jarrett e Charlie Haden sabem colaborar.

Nepentes

Aí que o mundo, assim, no geral, *não está colaborando*.

Aí que eu estava precisando muito ouvir música.
 
Então fiquei ouvindo em loop minha versão preferida de Prelude to a Kiss – que não, não é nem a do próprio Duke Ellington, nem a da Sarah Vaughan, nem a da Billie Holiday.
 
Minha versão preferida de Prelude to a Kiss é de um saxofonista chamado Dayna Stephens. Ele chamou a Becca Stevens para cantar e gravou uma versão que é a que mais me emociona. É uma interpretação tranquila, não dada a grandes arroubos, e é tudo tão bonito, a começar pela primeiríssima nota – ela canta, inicialmente desacompanhada, um longo “iiiiif”, e por um instante você tem a sensação de que esse “if” inicial não é voz, e sim um trompete com surdina.
 
Mas não tinha essa música no youtube (eu disse que o mundo não tem colaborado).
 
Só que enquanto eu a procurava, trombei com esta outra, do disco anterior do saxofonista – quem canta aqui é a Gretchen (sim, eu sei, kkk, hohoho) Parlato.
 
E esta outra música é quase tão linda quanto a que eu estava procurando. Só não é mais porque Prelude to a Kiss é uma composição inifinitamente superior a But Beautiful.
 
Foi assim que, de tanto ouvir música, fui me acalmando e fui me animando. Para a vida. De novo. Apesar da baixíssima colaboração do mundo em geral.
 
Então, navegando nas águas (agora um pouco mais tranquilas) da internet, descobri que o disco do Dayna Stephens que tem esta versão de But Beautiful chama-se That Nepenthetic Place.
 
No site do artista, está escrito assim: “A nepenthe is an elixir that relieves one’s worries and sorrows. In Homer’s Odyssey, the nepenthe is a potion given to Helen to cure her woe.”
 
No Houaiss, encontrei: “nepentes, substantivo masculino de dois números. Na Antiguidade, certa bebida com poderes para acabar com a tristeza.”
 
Quase sempre, ouço música não para atingir o estado de espírito A ou B. Ouço música para atingir o estado de espírito de quem está ouvindo música. Ouço música porque gosto de música.
 
Hoje, porém, não posso negar: a música me foi, de fato, nepentética.
 
Obrigada, Dayna Stephens e Gretchen Parlato.

A música flutuante do Brad Mehldau trio (BMW Jazz Festival, São Paulo, 08/06/13)

Eu não poderia deixar de comentar aqui o quanto foi especial o show do Brad Mehldau Trio no sábado. Eu achava que o pianista estava em seu auge do auge ali na época dos Art of the Trio vol. 4 ou 5. Essa impressão se confirmou quando Jorge Rossy deixou a banda, dando lugar ao Jeff Ballard; lembro bem da sensação de ouvir o começo de Day is Done, primeiro disco com Jeff Ballard na banda, e imediatamente desgostar do timbre dos pratos utilizados, metálicos demais para o meu gosto.

Poucas coisas são melhores do que se descobrir errada a respeito de música e a respeito do seu próprio gosto. De fato, eu tinha razão que as artes do trio 4 e 5 mostravam Brad Mehldau em seu auge. Mas eu estava completamente errada em não considerar que uma nova fase ainda mais incrível estava por vir – e que Jeff Ballard faria parte dela.

A música que o trio apresentou no sábado foi leve, levíssima – e, ao mesmo tempo, sugeria uma densidade e uma profundidade abissais. Imagine uma imensa e bem estruturada embarcação de papel singrando pelo mar, imponente e leve, monumental e, apesar de feita de papel, nada frágil. A música do Brad Mehldau trio é assim; ouvi-la é embarcar nesse navio, com disposição para viajar.

A principal característica deste grupo é sua peculiar apropriação do tempo, e isso tem tudo a ver com a sensação de leveza que descrevi acima. O trio parece tocar não dentro do tempo, mas acima ou em torno dele, criando a ilusão de uma completa ausência de esforço por parte dos músicos – é como se eles não estivessem tentando soltar a música das amarras do tempo, sendo que, paradoxalmente, estão fazendo exatamente isso. Não foi por acaso que escolhi a metáfora da embarcação: a música me passa a sensação de flutuar no espaço, oferecendo-se de forma quase disciplicente ao ouvinte. Essa flutuação, por sua vez, remete à viagem de que falei acima – pode ser que seja apenas uma predisposição minha, mas prefiro acreditar que esta predisposição casou-se com o que a música oferecia de forma objetiva: a possibilidade de percorrer estados emocionais distintos, não se fixando por muito tempo em nenhum deles. Ora eu me deixava surpreender e emocionar pela riqueza e a exuberância de uma frase do piano, ora me deixava capturar pelo timbre do baixo que tanto me agrada, ora me surpreendia com algum acorde diferente introduzido em “And I Love Her” (e como foram bem colocados, esses acordes). Mas eu prestava atenção a um aspecto aqui, outro ali, descompromissadamente, sem a afobação de querer captar e entender tudo, mas apenas me abrindo à possibilidade (e ao desejo) de ser atravessada pelo que flutuava no ar.

E acho que essa minha falta de afobação enquanto ouvinte não surgiu do nada, mas foi reflexo da completa falta de afobação e desespero do próprio grupo. Como é possível swingar tanto sem nenhuma pressa? Eu não sei, mas o Brad Mehldau Trio sabe. Eles fizeram uma música madura, tranquila, sem nenhum exibicionismo, nenhum mamãe-olha-como-eu-toco. Repare que tranquilidade, aqui, não é sinônimo de andamento lento. Eles podem tocar no andamento rápido que for, que a música permanecerá tranquila.

Uma associação óbvia que me ocorre ao que venho descrevendo até aqui é o zen – pareceu-me a coisa mais natural do mundo ver Brad sentado em posição de lótus durante um solo de bateria, muito embora, agora que estou parando para pensar a respeito, não me lembro de jamais ter visto outro pianista de jazz nesta posição durante uma apresentação. Só que, sobre o zen, sei apenas o que o senso comum dita. Sobre a Psicanálise, sei um pouco mais, e é a ela que vou recorrer para caracterizar minha experiência de ouvinte: a música do Brad Mehldau trio deixou-me em estado de atenção flutuante, sem memória (rapidamente me esqueci de todas as atribulações sofridas para chegar ao HSBC – o trem atrasou, o táxi demorou, chateações desse tipo) e sem desejo (não me peguei naquele estado “toca Raul!!!” que tão frequentemente nos acomete quando estamos no show de um artista cuja obra conhecemos bem). Este é o tipo de escuta que Freud considera necessária a um analista em sua relação com o analisando: idealmente, o analista deveria distribuir sua atenção de forma uniforme sobre a fala do analisando, deixando-se capturar por um aspecto ou por outro desta fala sem privilegiar nada a priori.

E foi assim que, curiosamente – esta não é uma experiência comum para mim – ouvi o Brad Mehldau Trio no sábado.

***

Alguns outros pontos que fiquei com vontade de destacar:

  • Dinamicamente, este grupo sempre esteve associado, para mim, ao mezzo forte; desta vez, porém, notei uma variação dinâmica maior, sobretudo nos interlúdios de piano solo. Pode ser que essa minha percepção tenha sido apenas fruto da excelente qualidade do som (um beijo, técnico de som); de qualquer forma, fui capaz de perceber mais contrastes – um espectro dinâmico maior parece ter sido explorado, do pianissimo ao mezzo forte.
  • Alguns músicos/grupos nos passam a impressão de transmitir a música (me refiro aqui a uma composição específica) “como ela é”, como se fossem capazes de extrair a essência musical de uma partitura. Outros parecem particularmente habilitados a transformar composições alheias em criações próprias. Brad Mehldau pertence a esse segundo grupo.
  • Meu momento preferido da noite foi “Trocando em Miúdos”, especialmente pela condução rítmica do trio – parecida com o que se ouve aqui, aqui e aqui, só que mais lento.