Sálvia

Se eu tivesse de deixar um e apenas um conseho, recomendação, pílula de sabedoria para a posteridade, seria o seguinte:

PLANTE SÁLVIA

Não importa onde você mora: um vasinho de sálvia bem pequenininho cabe no batente de qualquer janela. O meu eu ganhei da minha sogra, e não durou nem duas semanas: RIP sálvia. Então minha sogra me deu outro vasinho, eu não fiz absolutamente nada de diferente com ele – botei no mesmo lugar e reguei a cada 2/3 dias – e desta vez a sálvia vingou. (Talvez um conselho melhor ainda fosse “tenha uma sogra que te dê plantinhas de presente”, mas vamos focar na sálvia por hoje.)

Plante sálvia, tenha sempre uma sálvia por perto. Porque um dia, o seu avô vai morrer. E você estará sozinha em casa, à noite, e a sopa de mandioquinha que você fez para o almoço não deu muito certo, e você estará pensando no seu avô, na sua avó, que não morreu, e na PEC 241, que também está vivinha da silva, e então você irá à varanda e colherá uma, duas, três, oito folhinhas de sálvia. Você colocará macarrão para ferver, fritará uns cubinhos de bacon, jogará uma manteiguinha por cima, desligará o fogo, lançará na frigideira as oito folhas de sálvia, escorrerá o macarrão, acrescentá-lo-á (leave the mesóclise alone, pls) à misturinha de bacon, manteiga e sálvia, jogará muito parmesão ralado por cima de tudo, e comerá sentindo um quentinho na barriga e um abracinho no peito.

Tudo culpa da sálvia, que perfuma a manteiga e mostra que o seu avô tinha mesmo razão,  viver é bom e macarrão nunca é demais.

O.

Everyone sometime has somebody close die,

between to be or not to be

he’s forced to choose the latter.

 

We can’t admit that it’s a mundane fact,

subsumed in the course of events,

in accordance with procedure:

(Wislawa Szymborska)

 

Meu avô, um touro, o homem mais forte que conheci, que fez musculação até quase os oitenta anos. Meu avô, que de manhã preparava um lanche de pão com manteiga, queijo, requeijão, salame, geleia e depois chuchava tudo no café com leite.

Meu avô, mecânico especialista em câmbio hidramático, dos poucos que havia em São Paulo nos anos 1950.

Meu avô que ouvia Nelson Gonçalves, Ray Conniff e uns discos de flauta paraguaia desses que vendem na Praça da Sé, e que um dia ganhou de mim uma fita cassete cheia de Frank Sinatra e Ella Fitzgerald, e gostou.

Ele me buscava na escola, às vezes. Quando casei, ele disse ao meu marido: “você é gente fina!”, e ele nem sabia nada sobre o meu marido, e mesmo assim ele acertou.

Meu avô que queria jogar uma bomba no Congresso. Que gostava da praia, mas mais ainda da cidade e do concreto; que admirava Niemeyer a ponto de ir a Brasília para a inauguração.

Meu avô eleitor fiel do Maluf, que me explicou por que o Lula perdeu um dedo no torno: “você já viu um torno?” “não, vô” “pois se tivesse visto saberia que o Lula perdeu o dedo de propósito só para nunca mais precisar trabalhar, porque não é possível alguém perder um dedo no torno, tem que ser muito imbecil”.

Ele era o rei das frutas, a fruteira da casa de meus avós sempre transbordou de cheiros e cores e eu tinha certeza de que a fruta preferida dele era abacaxi, mas naquela que eu considero que foi a nossa despedida, ocorreu-me perguntar de qual fruta ele mais gostava, e ele pensou muito sério (fora uma pergunta séria, de fato) e respondeu que a fruta que ele realmente não poderia viver sem era mamão, sem o mamão matinal ele não era ninguém.

Uma vez fomos a um show da Gal Costa e sentamos na primeira fileira. Ela cantou Folhetim olhando nos olhos dele. Nunca vi meu avô sorrir com tantos dentes quanto naquela noite.

Meu avô, que pescava em alto mar. Que torcia pelo Palmeiras. Que fundou uma fábrica com os filhos. E que trabalhava, todos os dias, no chão da fábrica, enrolando fio, fazendo o que precisasse.

Meu avô que me ensinou que eu nunca aprendo que as pessoas morrem.

Diarinho da Tese

A tese foi pensada e escrita ao longo de quatro anos. Mas a reta final – os últimos quatro meses – não foram deste mundo. Foram quatro meses de

STOP

a vida parou

ou foi a tese?

***

Eu simplesmente fui parando. Parei com a internet. Parei com o impijman. Parei de ir à academia. Parei de cozinhar. Parei de lavar a louça. Parei de sair de casa. Joguei tudo para o alto e segui em frente, meu marido e minha avó atrás de mim fazendo malabarismos para que nada se espatifasse no chão.

Nos últimos dois meses eu olhava para a caixinha de 300 cotonetes. Usamos 4 cotonetes por dia, 300 por 4 dá 75 dias. Tenho dois meses para entregar a tese. Eu tenho que entregar a tese antes que os cotonetes acabem. Quando a caixinha estiver vazia, terei terminado a tese. Terei terminado a tese?

***

Eu tinha uma pilha de livros ordenada. Eu não tenho mais uma pilha de livros ordenada. Eles ficam espalhados pelo chão. Às vezes empurro a cadeira com rodinhas para trás e atropelo algum pobre livro. É triste.

Estamos na cena de um crime: o sangue derramado forma duas linhas paralelas no asfalto.

Agenor chamou o livro On Sublimation que está no chão do quarto de Os Saltimbancos. Tá certo.

Ocorre que, à medida que Freud desenvolve o que vai acontecendo com esse organismo vivo ou aparelho psíquico primitivo, a imbricação mútua entre interno e externo começa a aparecer, e o pressuposto do qual partiu desmorona.

Neste momento não estou trabalhando para terminar a tese, para aprender alguma coisa, para ser doutora, nada disso. Estou trabalhando para terminar a parte 2 da tese na sexta-feira e sair para comer um hambúrguer. E, se eu quiser, bolo de chocolate também. Claro que quererei.

A transação entre a cidade de Baltimore e Fatface Rick mostra a relação promíscua entre o tráfico de drogas e políticos locais, com a qual entramos em contato já na primeira temporada: em troca de doações eleitorais, os traficantes conseguem lucrativos negócios no ramo imobiliário.

Hoje interrompi o trabalho para pagar as contas de telefone, gás e internet. A conta de gás veio bem mais barata, já que não tenho cozinhado. Faltou a conta do IPVA. Essa deixei para pagar daqui a uns dias, porque daqui a uns dias certamente precisarei de um motivo para interromper o trabalho e entrar no site do banco.

A realidade é algo com que se estabelece uma relação: guardemos essa ideia. Guardemos também uma intuição: a de que o “mundo externo real” é uma instância simultantemente constituída pelo aparelho psíquico (afinal, o “mundo externo real” entendido como instância separada de Id, Eu e Super-eu é uma conquista do desenvolvimento psíquico) e constitutiva do aparelho psíquico (tanto quanto Id, Eu e Super-eu – afinal, o aparelho psíquico se desenvolve por meio de sua relação com o “mundo externo real” entendido como algo previamente existente ao surgimento do aparelho).

Estou fingindo que a revisora não me mandou e-mail e que preciso mandar tudo prontinho para ela antes do final do mês.

A “conquista de terreno” do princípio de realidade sobre o princípio de prazer é análoga à civilização que vai conquistando a natureza, cuidando para deixar uma parte dela intocada – o Yellowstone Park. Nessa nota de rodapé, Freud estabelece uma ponte entre aparelho psíquico individual e cultura. Com o estabelecimento do princípio de realidade sobre o princípio de prazer, a humanidade domina progressivamente a natureza, alterando-a de modo a satisfazer nela suas necessidades materiais: a agricultura provê alimentos para um número cada vez maior de pessoas, o desvio do curso dos rios e a construção de reservatórios provê água para regiões onde ela era escassa, e assim por diante.

Meu orientador virou meu contato número 1 no Gmail.

A dominação da natureza significa que a humanidade a toma não como imanência e sim como recurso: ela passa a servir aos propósitos que a humanidade determina. Em This Changes Everything (2014), Naomi Klein propõe que Francis Bacon pode ser considerado o “patrono” da dominação da natureza, à qual o filósofo se refere da seguinte forma: “Pois há que tão somente seguir e, por assim dizer, perseguir a natureza em seus desvios e será possível, no momento em que se queira, domá-la e depois reconduzi-la ao mesmo lugar.”

Estou trabalhando até as três, aí durmo até as oito, acordo, trabalho mais duas horas, durmo até o meio-dia, vou almoçar na casa da minha avó, volto para casa, continuo trabalhando e parando para tomar café e jogar o joguinho da corujinha.

Esse país outro que The Wire apresenta é produto do que Simon (Talbot, 2007) chama de “unencumbered capitalism”, isto é, “capitalismo desregulado”, não sujeito à regulação do Estado. O capitalismo – ou, mais precisamente, as instituições em um mundo sob a égide do capitalismo – é justamente o que “move as peças” do jogo (cf. p. 33 e segs.) apresentado por The Wire.

Mas parei de jogar paciência, sabe-se lá por quê.

A nota de rodapé em que Freud menciona o Yellowstone Park relaciona implicitamente os dois princípios de funcionamento do aparelho psíquico a um destino pulsional que talvez possamos chamar de sublimação. Quando fala em exploração dos recursos do solo que leva à riqueza de uma nação, está se referindo à constituição da cultura ou civilização; do progresso tecnológico e científico descrito em “Moral sexual ‘civilizada’” (Freud, 1908/1996), que só pôde ser atingido graças à supressão pulsional.

A tese por enquanto está assim: tem um prólogo. Uma primeira parte cujo esqueleto está prontinho. Uma segunda parte cujo esqueleto está prontinho e está sendo devidamente preenchida com músculos, sangue, gordurinhas. Uma terceira parte igualmente esquelética. E um epílogo que só existe na minha imaginação.

Sustento uma interpretação mais ampla da de Simon para o jogo. Como vimos, para ele o jogo nada mais é que o próprio capitalismo. Mas a obra ultrapassa a interpretação de seu autor: além de mostrar os efeitos do capitalismo, The Wire mostra o legado da segregação racial nos Estados Unidos e da escravidão, já que os efeitos do capitalismo sobre negros e brancos mostrado pela série é bastante diferente. No caso da população negra, essas consequências vêm se somar a uma forma de opressão preexistente.

Minhas unhas não existem.

A mensagem de Hamsterdam é clara: o capitalismo é bom e viável desde que regulado, moderado em suas intenções. Esse raciocínio é análogo ao de Freud ao tratar das pulsões sexuais e da necessidade de sua contenção, no âmbito do primeiro dualismo pulsional. O pressuposto nos dois casos (sistema econômico e sistema psíquico) é o mesmo: assim como a pulsão sexual, o capitalismo, se deixado livre para atingir seus fins, torna-se destrutivo e contrário à civilização. São necessárias rédeas para a pulsão sexual e para o capitalismo: é necessário domar o desejo de satisfação sexual imediata e o desejo de lucros ilimitados. Só assim, segundo Freud e também segundo Simon, se constrói a civilização.

O mais difícil é chegar a um formato adequado. As temporadas da série, as temporadas de Freud.

E, no entanto, sustentarei ao longo deste capítulo que The Wire não se limita a defender o argumento da necessidade de que o Estado regule o capitalismo – argumento este que casa tão bem com a primeira dualidade pulsional freudiana.

No fim de semana trabalhei enquanto Agenor via Star Wars na sala. É bom trabalhar com barulho de lutinha de fundo.

Defendo também que The Wire mostra mais do que isso: a série aponta que, além de satisfazer as pulsões sexuais humanas, o capitalismo também satisfaz pulsões de morte. Enquanto Simon interpreta o capitalismo no âmbito da primeira dualidade pulsional, sua obra vai além e oferece uma leitura do capitalismo condizente com a segunda dualidade pulsional freudiana.

Considerando-se que nesses últimos quatro anos Agenor assistiu às obras completas de David Simon comigo (The Wire do começo ao fim duas vezes, mais alguns episódios avulsos; Tremè; Generation Kill; Show Me a Hero; só faltou Homicide e The Corner, que vi sozinha), acho justo que ele escolha todos os filmes e séries pelos próximos quatro anos.

The Wire mostra, assim, o desenvolvimento do capitalismo através dos sucessivos líderes do tráfico de drogas. É importante ressaltar que se trata de um aperfeiçoamento do capitalismo, certamente não de sua crise. E esse desenvolvimento, para The Wire, tem um sentido bastante claro: é a história da progressiva desvalorização da vida humana.

Dei uma olhada no ombro do Agenor. Fui abraçá-lo e tenho o costume de me jogar em cima dele quando o abraço. Mas desta vez calculei mal e bati com o olho no ombro dele. Doeu. Dei uma olhada no ombro do Agenor.

A dominação de The Wire é aquela de que fala Bacon em relação à natureza (cf. p. 108), mas aplicada a corpos humanos: o outro (seja a terra, os rios, o petróleo – ou os corpos humanos, que não deixam de ser parte da natureza) é tratado como recurso a ser explorado.

O disco novo de piano solo do Fred Hersch é lindo.

Pulsão de morte em ação: a sublimação a partir de The Wire

Um país de tias noveleiras desamparadas

Um das melhores lembranças que tenho das férias na praia é a das minhas tias acompanhando a novela. O ritual que se cumpria às nove horas da noite – todas as tias reunidas na sala e alheias à movimentação dos filhos na varanda; todas aquelas paixões, tão incompreensíveis para mim, das pessoas na televisão; a televisão em si, que magicamente não exibia propagandas no intervalo – me era novo e fascinante.

A novela passava, e as tias comentavam – não os fatos da trama, mas a aparência das atrizes. Roupas, esmaltes e maquiagens eram escrutinados milimetricamente. Enquanto a heroína da novela padecia de dúvidas entre o mocinho bonitão e de bom coração, porém simplório, e o homão feioso e meio cafajeste, porém sedutor, minhas tias analisavam, cena a cena, se os sapatos da atriz estavam de acordo com a bolsa e se seus cabelos estavam corretamente penteados.

Engana-se quem pensa que minhas tias faziam uma leitura superficial da novela e ignoravam a trama. Pelo contrário – se fossem perguntadas, saberiam dizer exatamente se Maria Roberta estava mais inclinada a escolher Claudinho ou Jorjão. Ocorre que, ao mesmo tempo, elas eram perfeitamente cientes do (e sensíveis ao) fato de que Maria Roberta era também uma atriz famosa em permanente disputa com outras atrizes famosas por seu quinhão de fama, beleza e poder no mercado das atrizes globais.

***

Corta para a nossa novelinha política de todos os dias no Brasil de hoje.

A trama principal é o impeachment. Não sabemos se o próximo governo virá daqui a um mês ou três anos; sabemos, porém, que o próximo governo é o único que importa; no atual, ninguém acredita mais. Acordos e conchavos contra ou a favor do impeachment e pesquisas de opinião sobre uma eleição que só virá (se o mundo ainda existir) daqui a três anos tornaram-se a principal matéria-prima da seção política dos jornais. Nenhuma discussão sobre políticas públicas é tão sexy quanto as apostas sobre quem vencerá nossa Guerra dos Tronos que parece cada vez mais perto de chegar no momento da Invasão Zumbi.

Além do impeachment, há duas tramas secundárias: o ajuste – de onde se pode ou se deve cortar (deste ou daquele ministério, deste ou daquele programa social) – e a corrupção. Tramas que equivalem a dois mandamentos negativos, portanto: não gastar mais do que se tem, não roubar. Nada que qualquer mãe suficientemente boa não ensine a seu filho cotidianamente. De resto, porém – cadê a parte positiva da novela? Quais são efetivamente as propostas para o país – seja do governo ou da oposição?

De repente, é como se Maria Roberta não estivesse mais em dúvida entre Claudinho ou Jorjão. É como se a atriz furasse a quarta parede, se dirigisse diretamente aos espectadores e discutisse as qualidades deste ou daquele sapato, deste ou daquele esmalte – admitindo para si mesma e para os espectadores que a vida amorosa de Maria Roberta é uma bobagem e que o que importa mesmo é ela, atriz, tornar-se rica e poderosa vendendo os esmaltes e sapatos que levam seu nome.

***

Não existe mais trama subjacente – um projeto de país – no debate político de hoje. Só sobrou a disputa pelo poder – não há nada além ou aquém disso. Em 31 de dezembro de 2014, estávamos vidrados na vida de Maria Roberta. Em 1 de janeiro de 2015, é como se a Globo, passando por sérios problemas orçamentários, tivesse convertido a novela em um grande infomercial – chega dessa palhaçada de vida sentimental, o negócio aqui é ver quem vai vender mais produtos para ser escalado no elenco da novela seguinte.

Esse mérito, pelo menos, nossa novelinha política atual tem: com todos os seus acordos e conchavos, ela nunca foi tão… Honesta. Permanecer no poder, reconquistar o poder: nunca esses dois objetivos foram tão transparentes como agora. Não existem propostas para o país subjacentes a quaisquer desses objetivos.

Maria Roberta, coitada, deve ficar sem sexo por um bom tempo.

Os melhores discos de 2015

16. Cecile McLorin Salvant – For One to Love. Essa moça é tão talentosa e tão capaz de imitar Sarah Vaughan perfeitamente que chega a dar agonia – às vezes ela ainda parece estar à procura de sua própria voz. Voz essa que ela certamente encontrou nas faixas 4-6 desse disco, sobre dor de amor/traição/medo de ser traído. É ouvir e se identificar na hora, e ter vontade de abraçar a moça, ou talvez uma versão mais jovem de você mesma.

 

15. Terence Blanchard – Breathless. Um disco sem unidade nenhuma, mas com momentos tão bonitos que valem a inclusão em qualquer lista de melhores do ano. Tem funks de New Orleans e temas que parecem trilhas de filme. E Breathless, a canção mais importante, um tributo a Eric Garner e Woody Guthrie ao mesmo tempo (“This land is my land”).

 

14. Björk – Vulnicura. Ninguém transforma angústia em música melhor que essa mulher. E olha que não faço ideia do que ela está falando. Meu foco ao ouvir esse disco, como todos os outros discos dela, é sempre nas sonoridades, texturas, batidas, timbres. Nos sons em que a voz de Björk é capaz de se transformar. Um disco para acabar com qualquer festa (discos que acabam com festas, melhores discos).

 

13. Julian Lage – World’s Fair. Violão de aço solo. Composições próprias. Teria tudo para ser, mas não é, um disco monótono. São tantas as variações de tempo e dinâmica que você cola o ouvido em cada música e não desgruda mais. É um disco (até por causa do instrumento) que soa mais folk e bluegrass do que jazz – mas, claro, o jazz é aquele elemento sem o qual nada ali teria sido possível.

 

12. Brad Mehldau – 10 Years Solo Live. Disco enorme, para se ouvir pelos próximos anos e eternamente descobrir coisas. Ouvi-lo é uma experiência reveladora – Brad Mehldau parece ser o compositor de todas as canções, seja um standard como Get Happy ou um rock moderninho como Bittersweet Symphony, e é um prazer viver por algumas horas nesse mundo assinado por ele.

 

11. José James – Yesterday I Had The Blues – The Music of Billie Holiday. Em geral sou contra tributos. Um tributo no centenário do nascimento de Billie Holiday, então – nossa, “mais caça-níquel impossível”, diria meu self cínico. E de repente me vi torcendo para José James caçar todos os níqueis possíveis com esse disco, porque ele realmente merece. Voz + piano trio. Eu gosto tanto do pianista, até quando ele erra (na primeira música) ele acerta. E o Strange Fruit a capella do final, caramba. Às vezes a coisa mais inovadora e revolucionária que se pode fazer com um standard dos anos 1930 é transformá-lo em algo ainda mais antigo – no caso, um spiritual.

 

10. Tigran Hamasyan – Mockroot. Tem sido uma alegria cada vez maior acompanhar o desenvolvimento da inclassificável obra do Tigran, que mistura jazz e música eletrônica com música armênia. Mockroot é uma ótima adição ao conjunto, mas meu preferido cotinua sendo Red Hail, de 2009.

 

9. Kendrick Lamar – To Pimp a Butterfly. Nunca houve um disco de hip-hop tão ao meu gosto. É para se ouvir com o site Genius Lyrics aberto ao lado para ir sacando as referências todas. Por exemplo, o “Alls my life I has to fight” que abre “Alright” é uma referência a “A Cor Púrpura”, que ainda não li. O conteúdo, em geral, é um pouco careta – a poética de Lamar é totalmente cristã, temos o Bem contra o Mal o tempo todo (um dos personagens principais do disco é Lucy, isto é, Lucifer). Mas, formalmente, é sensacional. Os arranjos são lindos, detalhadíssimos, super complexos. E não há como não se emocionar com a belíssima Alright, o hino informal do Black Lives Matter.

 

8. Donny McCaslin – Fast Future. De repente o Donny McCaslin ficou conhecido como o cara do último disco do David Bowie. E, bem, para mim que sou louca é justamente o contrário, né? Ter chamado o Donny McCaslin para gravar fez o David Bowie subir no meu conceito :-) Enfim. Este disco é, como dizê-lo de maneira politicamente correta, um disco de macho. Cheio de vigor, energia, solos de saxofone arrebatadores e uns mantras.

 

7. Hamilton – Original Broadway Cast Recording. Das coisas mais geniais que já ouvi: um musical de hip-hop contando a história de um dos Pais Fundadores dos EUA, no caso o “10-dollar founding father without a father” (Hamilton estampa a nota de 10 dólares). Mas não é exatamente hip hop. Também não são exatamente musiquinhas de musical. É realmente uma coisa nova. Você tem batalhas de rap entre Hamilton e Jefferson sobre o sistema financeiro dos EUA. E é inacreditável como funciona bem. As rimas são de outro mundo, é tudo tão perfeitamente articulado e fácil de entender. Há vários motivos musicais e líricos que se repetem ao longo da obra, e são facílimos de decorar, e tenho passado os últimos dias cantando “Yo I’m just like my country / I’m young, scrappy and hungry / And I’m not throwing away my shot”. Estou realmente encantada e deslumbrada – é meu disco preferido do momento. Talvez escreva um post separado sobre ele qualquer hora.

 

6. Snarky Puppy – Sylva. O melhor disco do SP até agora – não por acaso, com a Metropole Orkestra. É uma suíte orquestral, com tudo o que nos acostumamos a esperar do SP (“music for the brain and the booty” – i.e. melodias lindas e grooves contagiantes), só que com ainda mais camadas.

 

5. Mathias Eick – Midwest. Sabe como eu falei que o disco do Donny McCaslin é um disco de macho? Pois este é um disco de mulherzinha, o que é um elogio tão grande quanto. Jazz norueguês, com muito ar, muito espaço, tudo acústico, tudo bonito, cristalinamente bonito.

 

4. Lianne La Havas – Blood. Que alegria ter descoberto essa moça no ano passado. Que cantora incrível, que compositora melhor ainda. Cada música é uma pérola, de uma densidade, uma profundidade, uma perfeição. Um disco sem pontos baixos. Obra-prima mesmo.

 

3. Fred Hersch – Solo. O que escrever sobre um disco que reúne meus compositores preferidos (Jobim, Mitchell, Monk)? Bem, vou escrever que esse disco me salvou. Foi o que mais ouvi na reta final da tese. Eu me abrigava nessas músicas todas as noites antes de dormir. Fred Hersch Solo foi minha casa por algumas semanas.

 

2. Kendrick Scott – We Are The Drum. Só não foi meu disco preferido do ano porque 2015 foi o ano do Furacão Kamasi. We Are The Drum foi certamente o segundo disco que mais ouvi ano passado. Até aprendi a cantar This Song In Me. Na verdade aprendi um monte de coisa. Porque ele é desses. Disco de ouvir sem parar e aprender cada um dos solos. Que é das coisas que eu mais gosto de fazer na vida. Kendrick Scott é um compositor bom demais. Eu não entendo nada de harmonia, mas mesmo sem entender, é o tipo de coisa à qual você instintivamente reage, e é impossível não reagir aos caminhos surpreendentes que a música de We Are The Drum vai tomando.

 

1. Kamasi Washington – The Epic. Uma das obras definidoras do nosso tempo. Deixo o link para o maravilhoso perfil do Kamasi que saiu no NYT, e copio o trecho que vai ao ponto:

“That sense of home, of African-American pride and identity, reverberates throughout ‘‘The Epic.’’ It’s not just the tributes to his grandmother and great- grandmother, or the concluding hymn to Malcolm X, which incorporates Ossie Davis’s eulogy as well as one of Malcolm’s speeches. It’s the album’s soaring panorama of black American musical history, from gospel and blues to jazz, doo-wop and funk, offered as a celebration of black beauty in the face of adversity. Its sound is particularly evocative of the early 1970s, when Marvin Gaye, Curtis Mayfield and Stevie Wonder were composing their own epics and jazz musicians like Max Roach were playing spirituals with gospel choirs. The Afro-futurist cover of ‘‘The Epic,’’ too, suggests an early ’70s LP: a picture of Washington in a black dashiki against an interstellar backdrop, saxophone in hand.

That blend of rebellious intent and retro self-fashioning is hardly unique to Washington. It permeates the cultural renaissance spawned by Black Lives Matter, a movement that has combined Black Power nostalgia with an exuberant faith in the revolutionary potential of technology and social media. ‘‘The Epic’’ is arguably the most ambitious expression thus far of this renaissance, whose touchstones also include Claudia Rankine’s prose-poem ‘‘Citizen,’’ Ta-Nehisi Coates’s memoir ‘‘Between the World and Me,’’ D’Angelo’s album ‘‘Black Messiah’’ and Kendrick Lamar’s ‘‘To Pimp a Butterfly,’’ with its indelible refrain, ‘‘We gon’ be alright.’’ Not surprisingly, ‘‘The Epic’’ has found a particularly receptive following among black intellectuals. As Robin Kelley, a historian at U.C.L.A. and a biographer of Thelonious Monk, puts it, ‘‘In a world where you feel like blackness is under assault and you’re looking for a way to express joy, pain and possibility, ‘The Epic’ speaks to what black people feel inside.’’ The writer Greg Tate, who calls Washington the ‘‘jazz voice of Black Lives Matter,’’ told me that his music offers ‘‘a healing force, a place of regeneration when you’re trying to deal with the trauma of being black in America.’’

O Limbo das Meias

Solucionei um dos grandes mistérios da humanidade: descobri onde vão parar as meias que desaparecem quando as colocamos para lavar.

Minha primeira teoria era de que elas voavam pela janela quando estavam estendidas no varal e batia um vento, mas eu estava errada. Sábado passado, eu vi a mágica acontecer. Eu vi a meia sendo abduzida pelo saci bem na minha frente.

Fui tirar a roupa da máquina. Peguei uma mãozada de roupa molhada e…

A meia escapou do bolo de pano e esgueirou-se por entre o cilindro e a parede da lava-roupa.

Sim: a lava-roupa tem um cilindro, um cesto onde você joga a roupa. E existe um espaço entre esse cilindro e as paredes laterais da máquina, que é para o cilindro dar aquela chacoalhada legal.

A meia caiu ali.

Desconfio que não tenha sido a primeira, e nem será a última. Desconfio também que, se todos virássemos nossas máquinas de lavar de cabeça para baixo, nossas lavanderias seriam tomadas por meias solitárias, calcinhas tristonhas, bilhetes únicos, bilhetes de amor, guarda-chuvas e notas de dez reais.

Recordando a eleição presidencial

Se existe alguma vantagem no fato de que tudo o que somos capazes de discutir atualmente sobre política é se e quando haverá o impeachment e quem e quando assumirá a presidência após Dilma é que… Olha, pensando bem não existe vantagem nenhuma não – juro que tentei começar o texto numa vibe otimista, mas não rolou. Vou reformular e tentar de novo.

Não existe nenhuma vantagem no fato de que tudo o que somos capazes de discutir atualmente sobre política é se e quando haverá o impeachment e quem e quando assumirá a presidência após Dilma. Nada me parece mais grave no debate político atual do que nossa falta de imaginação. Parece que a única pergunta que somos capazes de fazer é “quem ou o que virá em 2018?” – um cenário bastante propício à emergência de políticos carismáticos. (Nossa sorte é que Enéas já morreu.)

Por isso, já que – a começar por mim mesma – aparentemente não nos restou mais nenhuma imaginação e estamos sentadinhos à espera do que virá, vou aproveitar a oportunidade para refletir sobre aquilo que deveria ter passado e não passou. Pois me parece que, quando nos perguntamos sobre 2018, a verdade é que ainda estamos tentando entender o que raios aconteceu em 2014.

Vou retomar, então, o que a eleição presidencial de 2014 foi para mim. Uma mulher de trinta e poucos anos, paulistana, de classe média, preocupada com a falta d’água em São Paulo e com a catástrofe ecológica mundial.

Sobre a crise hídrica em SP: Aécio disse que era culpa do PT. Dilma citou José Simão e disse que São Paulo teria um programa de bolsa-banho. Marina apoiou Alckmin para governador.

Sobre mudanças climáticas: silêncio total. (Considerando-se o pujante debate travado sobre a crise hídrica, chega a ser um alívio que todos tenham ficado calados.)

Ou seja. Para alguém que leva a catástrofe ecológica e as mudanças climáticas a sério. Para quem isso é realmente a questão política mais importante do nosso tempo. Para quem está convencido de que aquecimento global, derretimento das geleiras, acidificação dos oceanos, extinção das espécies, não são questões filosóficas futuras e distantes, mas eventos reais que ameaçam nossa existência no planeta tal como o conhecemos. Para quem quer saber como o Brasil vai replanejar sua economia de modo a diminuir a desigualdade e a violência, ampliar o acesso a serviços públicos de qualidade, acabar com o desmatamento e reduzir drasticamente suas emissões. Simplesmente não havia em quem votar.

***

“Na briga entre ortodoxos e heterodoxos, entre neoliberais e desenvolvimentistas, eu ando cada vez mais ambientalista” (Idelber Avelar, 2015)

Repare que não se trata de encontrar o candidato perfeito e idealizado. Trata-se de apontar que uma discussão importantíssima sequer ocorreu. Nenhuma candidatura preocupou-se em explicar como iria conduzir a economia sem cozinhar o planeta. Esta não é uma questão que se coloca no debate político atual. No máximo, ouvimos a palavrinha “sustentabilidade” sendo salpicada aqui e ali. Mas uma efetiva discussão sobre programas econômicos que levasse em conta a realidade material da Terra – isso não existiu.

Não existiu em 2014, e segue não existindo agora, nenhuma liderança nacional, nenhum projeto político para o Brasil, que seja radicalmente sustentável ecologicamente e viável economicamente. Existem diversos políticos em quem votei e votaria com a maior confiança para o legislativo, e há também boas opções de voto para o executivo em nível regional. O que não existe é um projeto econômico que leve em conta o combate às mudanças climáticas – e um projeto de país que parta do princípio de que não existe justiça social sem justiça ambiental.

Estou dizendo o óbvio? Claro que sim. Só que essa obviedade – o de que não existe, por ora, uma alternativa ao desenvolvimentismo x neoliberalismo que está dado – é tão terrorífica que acaba sendo muito mais confortável, entre uma cerveja e um mojito, desviar o papo do bar para “e aí, hein? Lula volta em 2018? e o Ciro? e o Alckmin, será que agora vai?”. Porque é mais fácil. É tranquilizador. Porque com esses nomes conhecidos tentamos preencher um vazio absoluto de novas ideias.

***

Nunca cheguei a considerar Marina essa tão esperada terceira via ambientalista: seu programa econômico era o mesmo do PSDB (que é o que Dilma, agora, tenta implementar), apenas revestido de um discurso moralista que é ouvir uma vez e sair correndo na direção oposta sem olhar para trás (Marina, não nos esqueçamos, pretendia instituir “comitês de homens de bem” para ajudar a governar o Brasil). Gostaria que ela tivesse ido para o segundo turno, só para tirar o PSDB de vez da jogada e movimentar as peças no tabuleiro – mas a polarização que ela mesma tanto (e acertadamente) critica, PT x PSDB, permaneceria em grande parte intocada, já que seguiríamos na mesma ladainha desenvolvimentismo x neoliberalismo no debate econômico.

Votei em Luciana só porque anular o voto já no primeiro turno é niilismo demais até para mim. Então, apoiei a candidatura mais engajada na defesa dos direitos humanos, apesar da impraticabilidade de seu programa econômico. Mas, sem dúvida, foi um voto “de mentirinha”, no sentido de que não votaria nela num segundo turno, onde houvesse possibilidade real de vitória – assim como não votaria em nenhum dos demais. A verdade é que, para um segundo turno – a hora em que temos de responder à pergunta “quem você quer, de fato, que governe o Brasil?” – só me sobrou mesmo o nulo. O nada. O ninguém. Não existe uma liderança nacional sequer com um projeto de país no qual eu acredite.

É preciso construí-la.

A mulher da foto

Eu quase nunca penso na minha mãe. Ou talvez eu pense todos os dias, um segundo por dia. Mas alguns dias, é como se eu só vivesse para lembrar que minha mãe existiu.

***

Depois de um tempo, é fácil esquecer que as pessoas mortas foram vivas. As pessoas mortas sobrevivem como lembranças. Aquela vez que fomos a Paris. À venda da esquina. Ao simba safári. E vamos nos convencendo disso, que as pessoas mortas das nossas vidas são amálgamas de lembranças sem existência real que não em nossas cabeças, nas nossas e, no máximo, nas daqueles que compartilham conosco a pessoa morta em questão. É difícil, é difícil lembrar que aquele dia da venda da esquina em que ela me ensinou o que era broto de bambu, não era para ser uma lembrança, era para ser apenas mais um dia igual a todos os outros que se repetiriam pela vida afora. A Paris tudo bem, a Paris as pessoas vão para trazer lembranças, mas à venda da esquina vamos apenas para comprar os ingredientes do almoço.

E então de repente a pessoa morta existe como lembrança não apenas para mim meu pai minha avó minha tia mas também para dezenas, centenas de pessoas que não conheço, que não me conhecem, que só sabem de mim como a filha daquela moça que morreu, coitada.

Esta semana conheci uma mulher que conheceu minha mãe – só de longe, só de vista. A mulher nem sabia que minha mãe tinha morrido, mas minha mãe já sobrevivia como lembrança na cabeça dela.

“Era uma mulher elegantíssima”, disse.

Contei sobre o acidente. Minutos depois, ela volta com o marido. Perguntou se ele se lembrava de algum acidente fatal, há não sei quantos anos, na avenida tal e tal. Sim, ele lembrava. A vítima do acidente tinha sido professora de francês dele.

“Era uma mulher lindíssima”, disse.

Adorei a diferença no adjetivo. A mulher enfatizou o processo, percebeu ali uma inteligência em se vestir, se maquiar, se portar. O homem enfatizou o resultado do processo, a beleza final.

***

Uma amiga minha passou anos de sua vida bastante imersa e paralisada em um relacionamento amoroso naufragado. Fiquei com bastante aflição dessa amiga (não por acaso ela é e sempre será minha amiga). Eu, afundada no relacionamento amoroso primordial.

***

E tem as fotos. Uma foto, no caso. Não a foto que está na sala, esta é a foto para a qual se olha e não mais se vê. Mas uma foto 5×7, dessas de passaporte, com a diferença de que minha mãe está posicionada obliquamente em relação à câmera, o olhar firmemente centrado no além. Uma mulher tão diferente de mim. A pele tão mais escura, o cabelo tão mais crespo, o olhar mais expressivo, o nariz menos escandaloso, a boca menos desmesurada. E essa mulher que está lá, que não tem nada a ver comigo – existiu. Essa mulher abriu conta no banco. Tocou Chopin no piano. Virou a noite preparando aula. E eu não sei nada sobre essa mulher exceto esses detalhes. Exceto o que me contam. Exceto que, às vezes, sobrevém o horror.

***

“Pouco tempo depois que ela morreu, a escola de francês fechou, né?”, comentei com o homem de quem minha mãe tinha sido professora. Foi sim, ele respondeu. “Ela era a alma do negócio”.

Elegantíssima, lindíssima, alma do negócio – qualificadores que me são estranhos, que não brotaram da minha cabeça, que jamais apliquei a ela, e que não obstante não são menos legítimos que os meus. Eles não se aplicam à minha mãe. Eles se aplicam à mulher da foto.

***

O horror em nada se parece com a ausência da mulher da foto. É difícil ligar os pontos e acreditar que a mulher que existiu, a mulher da foto, é a mesma pessoa que mora na minha cabeça. Tenho muito mais intimidade com a pessoa que mora na minha cabeça. Convivo com ela há vinte e três anos.

Com a mulher da foto, convivi apenas dez.

De como nasce um sonho musical

Restos diurnos:

1. Anteontem: comprei ingressos para o show de lançamento do disco novo de Guinga;
2. Ontem: no salão de beleza, à tarde, passava uma novela no vale a pena ver de novo; tocou uma música de Lenine;
3. Hoje: conversei sobre Lacan no tuíter.

Sonho-resultado:

Guinga + Lenine + baião de Lacan = MINGUS SAMBA na cabeça a manhã toda

Bom dia :-)

A empatia não irá nos salvar (notas esparsas sobre algumas fotos)

– Adoro a página Humans of NY. Na verdade, acho que não conheço ninguém que não adore. Humans of NY é tipo Beyoncé, um produto cultural que é praticamente tabu não gostar. Como não apreciar os relatos sempre surpreendentes ou comoventes, as histórias tantas vezes edificantes, o espanto diante da vida extraordinária de pessoas ordinárias? Como não se encantar com tantas pessoas tão diferentes, com histórias de vida tão diversas, partilhando tantas vezes dos mesmos sofrimentos, apreensões, temores, esperanças?

– Estive na exposição de fotos do Eduardo Viveiros de Castro, com curadoria de Eduardo Sterzi e Veronica Stigger. Demorei a me acostumar com as imagens, a despeito de sua beleza. Na verdade, jamais cheguei a me acostumar. Em todas precisei recorrer a uma legenda, a uma palavra que me ajudasse a fazer sentido do corpo representado. Em todas, pessoas estranhas em situações estranhas. Um homem enfiado num buraco de cabeça para baixo com as pernas para cima, outros homens agachados em volta. A legenda salvadora: “homens desentocam tatu”.

– O fotógrafo/entrevistador de Humans of NY passou pelo Paquistão, agora está no Irã. Mas as pessoas, as pessoas são exatamente as mesmas de Nova York. Em todo lugar, alguém cuidando de um pai com câncer. Um jovem ambicioso que acaba de se formar e pretende dominar o mundo. Uma mãe aflita por estar desempregada. Um casal apaixonado fazendo planos para o futuro. Um rapaz expulso de casa por ser gay.

– Na exposição, uma moça sendo escarificada por uma pessoa mais velha para participar de uma cerimônia. E eu… Bem, eu faço depilação. Também dói. E no entanto…

– O fotógrafo de Humans of New York está na Ásia, mas a verdade é que tanto faz. Por onde passa, fotografa almas gêmeas. Mudam as roupas, a cor da pele. Os sentimentos são iguais. Somos todos humanos.

– Sendo perfeitamente honesta – não, não me identifiquei com a índia. Sua escarificação nada tem a ver com a minha depilação.

– Em Humans of NY, por detrás das diversas aparências, revela-se sempre a mesma essência: um só mundo; uma só humanidade.

– Em Variações do Corpo Selvagem, revela-se outra humanidade. Dane-se que somos todos humanos. Aqueles humanos são humanos de um jeito completamente diferente do meu. Aquelas jovens não poderiam ser eu fazendo depilação, aquele rapaz não poderia ser meu marido caçando o jantar, aqueles bebês não poderiam ser meus filhos. É outra gente, outra vida, outro modo de existência.

– Se vemos (e vejo sempre com prazer) as fotos de Humans of NY, saímos sempre com um novo amigo, uma nova irmã, um novo avô querido. Ainda e principalmente quando a pessoa retratada é, digamos, um mendigo por quem passamos reto na rua. O mendigo, minha nossa, mudadas algumas circunstâncias, poderia ser meu pai; poderia ser eu.

– Nenhum corpo retratado em Variações do Corpo Selvagem poderia ser o meu.

– Se devemos respeito ao outro *porque* no-fundo-no-fundo, por detrás das aparências, somos todos humanos… Para algum não-humano o desrespeito há de sobrar. Sempre há um não-humano da vez, ainda que o Humans of New York viaje pelo mundo inteiro. Somos todos humanos, mas alguns sempre são mais humanos do que outros. (Ou: somos todos humanos; o importante é alimentar, agasalhar e cuidar dos humanos; logo, se para isso for preciso pôr abaixo coisas não-humanas como rios e florestas, paciência; afinal, tudo pelos humanos.)

– Mas e se, em vez de uma humanidade, houver uma multiplicidade de corpos selvagens e de modos de vida?

– Imagens que mostram que alguns são mais humanos do que pensávamos que eram – que se aproximam mais dessa tal essência humana de que todos supostamente partilhamos –; imagens que mostram que iranianos e paquistaneses também fazem compras no shopping e se preocupam com seus pais e filhos… São imagens que, em última instância, nos ajudam a decidir quem merece viver e quem merece morrer. Se você é humano, ou mais humano do que eu pensava, talvez seja menos fácil aceitar que você leve drones na cabeça em nome da preservação do modo de vida americano.

(- Evidente que: se Eduardo Viveiros de Castro fotografasse em Nova York ou no Paquistão, teríamos corpos estranhos com os quais seria impossível empatizar. Se o fotógrafo de Humans of NY fosse ao Xingu, teríamos novos Aylan Kurdis.)

– Mas e se decidíssemos que o direito de viver não depende de uma humanidade intrínseca – humanidade, aqui, entendida como qualidade/característica de uma essência última? E se o direito de viver fosse concedido não a uma alma humana, e sim à totalidade dos corpos selvagens?

– “Se a fotografia de Aylan Kurdi é tão provocadora e parece dizer tanto, talvez seja porque, na verdade, ela nos fale simplesmente da dor genérica da morte, do medo da perda de um filho, sem que por isso possa comunicar a devastadora experiência da guerra.” (Artigo de Gabriel Zacarias.)

– A foto de Aylan poderia estar em Humans of NY. Todos podem projetar o próprio filho no rosto oculto do bebê estendido na praia. A foto teve o mérito de nos mostrar que os refugiados são, afinal, humanos.

– “A força da imagem (…) não está naquilo que ela revela, mas naquilo que ela oculta.” (idem)

– O que a foto revela: que Aylan não deveria ter morrido daquele jeito, pois era humano. O que a foto oculta: que Aylan morreu porque era índio – no caso, curdo.

– As fotos de Eduardo Viveiros de Castro revelam corpos índios.

– Corpos que, por serem índios, estão sendo exterminados.