Passando cheque de papel sulfite

Chegaram-me notícias de que uma criança conhecida minha, de dois anos e pouco, pediu à mãe, numa fala inédita, que passasse o cartão. Desnecessário dizer que elas estavam em uma loja de brinquedos e a mãe dissera que não tinha dinheiro para comprar a nova Barbie Borboleta.

Eu era um pouco mais velha do que essa criança quando meu pai me explicou o conceito de cheque pela primeira vez. Claro que na mesma hora fiz-lhe um cheque de um milhão de cruzeiros (ou seriam cruzados?), para que ele investisse na empresa cuja situação financeira era motivo de preocupação constante.

Nem eu nem a menininha da Barbie fizemos qualquer coisa de especial. As crianças relativamente bem de vida aprendem muito cedo que dinheiro, no mundo, é o que não falta – só que às vezes calha de ele não estar disponível justo no momento em que mais precisamos dele. Para esses momentos, felizmente, os adultos inventaram dispositivos mágicos conhecidos como cheque (para as ex-crianças) e cartão (para as crianças atuais). O cheque e o cartão restauram a ordem do mundo, repondo o dinheiro provisoriamente faltante e sustentando a existência de Barbies e empresas familiares, conforme o caso.

Mas então cresci e percebi que meu pai não pôde sacar o cheque? A menininha crescerá e perceberá que não adianta ter cartão quando não se tem dinheiro?

Mais ou menos.

Algumas crianças realmente percebem e aprendem. As únicas que realmente aprendem que o dinheiro é um recurso limitado que não pode ser evocado magicamente por uma varinha de condão são aquelas que não dispõem de um banco familiar ao qual possam recorrer em caso de necessidade.

Outras, entre as quais me incluo, nunca aprendem efetivamente que o dinheiro pode acabar e, neste caso, não há cheque de um milhão que resolva. Não, não estou falando de deficiências cognitivas graves: sei muito bem a diferença entre um cubo card e um real, muito obrigada. Estou falando de outra coisa. Estou falando que, no meu mundo, o dinheiro nunca vai de fato acabar completamente. Mesmo que eu decida “viver uma vida mais livre”, largar o doutorado e fazer um mochilão pelo Tibet, nunca realmente correrei o risco de passar fome por falta de dinheiro. Sempre há familiares para quem poderei ligar. E o fato de que essa possibilidade existe é um acontecimento importante por si só – ela não precisa se materializar para produzir efeitos*. Eu posso ir para o Tibet e passar fome porque gastei todo meu dinheiro, claro. Mas sempre terei passado fome porque escolhi não pedir ajuda para ninguém. Eu poderia simplesmente ter pedido: passa o cartão, vai.

A fome – talvez o significante máximo da falta de dinheiro em nossa sociedade**, o que por si só já revela muito sobre nós: estamos convencidos de que só é possível se alimentar com coisas compradas no supermercado –, portanto, não me é uma possibilidade psicologicamente real.

A menina que fez o cheque de um milhão para o pai ainda está bem viva em mim – e acredita, goste eu disso ou não, que o pai sempre poderá fazer um cheque de um milhão para ela.

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Agora imagine como seria se todos, e não apenas alguns, tivessem a mesma relação com o dinheiro que fui ensinada a ter?

Indo um pouco além – como seria se todos tivessem uma relação com o dinheiro exatamente como a da menina de 2 anos para quem basta passar o cartão, ou da menina de 5 para quem a solução para todos os problemas passa por um cheque de um milhão rabiscado em papel sulfite? Já imaginou?

Substitua “dinheiro” por “água” e não será preciso imaginar mais nada. Substituindo “dinheiro” por “água”, você terá o Brasil.

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Tem as pessoas que insistem em lavar o carro em plena seca da Reserva Cantareira. Estas, é verdade, estão bem próximas do funcionamento mental das crianças para quem o dinheiro é mágico. E tem as pessoas que, como eu, até pararam de lavar o carro e se assustam quando leem que o nível está abaixo de 15% – mas se tranquilizam involuntariamente quando leem que esses 15% representam alguns trilhões de litros de água.

(Não sei vocês, mas eu tenho muita dificuldade de acreditar, acreditar de verdade mesmo, que qualquer coisa que chegue a “X trilhões” possa um dia acabar.)

Estas pessoas estão muito mais próximas do funcionamento mental das crianças – e do cara que lava o carro – do que parece. Para início de conversa, elas não estão fazendo racionamento de água (deixar de lavar o carro não é fazer racionamento, sinto muito – é apenas bom senso).  

Só vou acreditar que estamos realmente preocupados com a Reserva Cantareira quando começarmos a armazenar a água do enxágue da máquina de lavar.

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Para entender nossa (desastrosa) relação com a água, vale a pena olhar para a (desastrosa) relação dos índios com a cachaça. Cito Eduardo Viveiros de Castro:

“O capitalismo apresenta aos índios uma coisa que eles nunca tiveram: o infinito mercantil. Os objectos não acabam nunca. Você tem uma quantidade infinita de cachaça. É como se chegassem aqui marcianos que nos dessem soro da vida eterna. Os índios não entendem e consomem, consomem, consomem. Eles produziam pouco para ter tempo livre. O que acontece agora é que continuam produzindo pouco mas os produtos chegam em quantidade infinita.”

Impossível não lembrar da marchinha de Carnaval:

“Você pensa que cachaça é água? / Cachaça não é água não”

Não, não pensamos que cachaça é água. Pensamos que água é cachaça. Consumimos água como se ela fosse um bem eterno e infinito. O capitalismo é uma espécie de cristianismo da matéria, no fim das contas. O cristianismo nos ensina que o espírito é eterno – o capitalismo, que os recursos naturais são inifinitos, eternamente à nossa disposição.

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O engraçado é que o senso comum atribui o pensamento mágico aos índios, um bando de gente doida que faz dança da chuva. Nós, não: somos lógicos e racionais, sabemos que a chuva resulta da evaporação da água.

E nós, que somos tão lógicos e racionais, temos como “plano C” para a Reserva Cantareira (pois o B, que é extrair a raspa do tacho da reserva, já está sendo colocado em prática) a estratégia de torcer para que chova.

Não é preciso conhecer o que quer que seja sobre os índios para notar que, quando o assunto é água – e recursos naturais de forma geral –, quem tem pensamento mágico somos nós, não eles.

Nós é que tratamos os recursos naturais magicamente, assim como as crianças tratam o dinheiro – como se sempre fosse haver mais e mais recursos nalgum lugar, bastando passar o cheque ou o cartão para que o dinheiro chegue na nossa conta e para que a água jorre na nossa torneira.

O alcoolismo entre os índios, se entendi bem, deve-se em larga medida à introdução de um objeto infinito em um mundo até então povoado por recursos limitados.

Parece-me então que os índios, mais do que nós, sabem que os recursos naturais acabam – daí o choque diante do “recurso infinito” que é a cachaça. Para nós não-índios, a Terra continua existindo em um plano (na acepção geométrica do termo), sem contornos e sem limites. Não existe o conceito de “água acabar”. Existe o conceito de “eu tô pagando”. Se estou pagando a conta direitinho, então a água tem que vir.

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Foi morando nos Estados Unidos, em uma casa cujo banheiro não tinha ralo, que aprendi que era possível lavar todo um banheiro com apenas meio balde d’água.

Se você morou no Brasil a vida inteira, posso imaginar o que você está pensando. “Ah, vá! Gringo é tudo porco. Duvido que ficava limpo de verdade. Banheiro limpo é banheiro em que você despeja três, quatro baldes d’água – chuááá!”. 

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Outro dia a síndica do meu prédio conclamava os condôminos, por meio de uma nota afixada no elevador, a poupar o “precioso líquido”.

Eu ri, claro. “Precioso líquido”, jura? Menos, né?

Um beijo, querida síndica. Eu sou uma idiota.

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Sempre que surge uma ameaça de racionamento de água, fugimos dele como se ter menos água para lavar o banheiro fosse uma tremenda humilhação. E mais – pensamos em um eventual racionamento em termos de risco eleitoral. “Vai pegar mal pro Alckmin, vai pegar mal pra Dilma se rolar durante a Copa.” Não pensamos no consumo reduzido de água como um dado objetivo em um mundo onde os recursos são limitados.

Quando ameaça faltar água, nossa reação – a começar pelo governo – é semelhante à que eu tive quando meu pai me explicou a precária situação financeira de sua empresa. A resposta à crise é passar um cheque de um milhão em papel sulfite acreditando que será suficiente.

Acho que nada se parece tanto com o cheque de papel sulfite das crianças quanto a proposta de, em vez de economizar água, ir buscá-la mais longe. É o mesmo princípio nos dois casos: o recurso (dinheiro / água) não está aqui agora, é verdade, mas tem mais lá longe! Basta passar um cheque / ir lá buscar.

Que os deuses indígenas tenham piedade de nós.

 

* Mais ou menos como um relacionamento que se coloca a priori como aberto: antes mesmo que qualquer pessoa do casal saia com outros parceiros, essa relação já é necessariamente diferente de uma outra em que tal possibilidade é um tabu. A possibilidade, independentemente de sua concretização, institui uma realidade outra.

** Lembremos que o Programa Bolsa Família, de distribuição de renda, é sucessor do Programa Fome Zero.

3 comentários sobre “Passando cheque de papel sulfite

  1. Eu já comentei em vários fóruns sobre essa relação de criança com dinheiro. Quase sempre com viés de graça.

    E já comentei também em vários fóruns – geralmente nos mesmos – e mesa de butequins e de família sobre essa mania sudestina de gastar água como se não houvesse amanhã (consegui convencer meu pai a não lavar mais a calçada e a garagem com mangueira! \o/ )

    Mas eu nunca fiz nem sei se coseguiria fazer essa associação maravilhosa de ideias!

    E adorei a parte da cognição e cosmogonia indígena.

    Em suma, mais uma elaboração delícia de ler ;)

  2. cá, também sempre tive dificuldade de acreditar que algo contados ‘aos trilhões’ pudesse acabar. de repente, comecei a pensar objetivamente nesta possibilidade ao longo desta semana, com a ameaça de racionamento, e, consequentemente, na finitude de algo que pode passar dos trilhões para bilhões, milhões, milhares, centenas, zero.

    esse ‘cristianismo da matéria’ deixa a gente burro como o diabo, né, não?

    gostei tanto desse texto… <3

  3. Não consegui segurar a risadinha interna com a parte de armazenar a água da máquina de lavar e a enxurrada do banheiro! ;-) É difícil engolir essa mentalidade de “Se não tem cachoeirinha, não está bem lavado”. Também não entendo muito gente que fica lavando calçada (para mim, uma coisa suja por definição) e brincando de empurrar a sujeira com o jatinho de água.
    Também ache sensacional a sutileza com que você relacionou o raciocínio infantil e a sensação de “infinitude” dos recursos :-)

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