Os melhores discos de 2016

Sim, 2016. Ocorre que, em 2016, eu não ouvi nenhum disco de 2016 – lo único que ouvi, como nunca tinha ouvido nenhum disco antes, foi Hamilton. Foi um ano musicalmente incrível – e estranhíssimo. Finalmente passou. E em 2017 ouvi a música de 2016. Segue o que mais gostei:

(Como se chama um PS antes de começar uma lista? Vou chamar de INTRO: No ano passado concordei demais com as listas de melhores discos de música pop. E discordei frontalmente das listas de melhores discos de jazz. A maioria dos meus discos preferidos de jazz do ano passado não está em lista-de-melhores quase que nenhuma. Já os de pop, é tudo clichê-no-úrtimo.)

10. Radiohead – A Moon Shaped Pool. O que ficou, do disco, para mim: cordas, cordas, cordas. E timbres e ambiências e uns reverbs lindos na voz. A melancolia de sempre do Radiohead, mas com ainda mais beleza desta vez.

9. Solange – A Seat At The Table. Acho que nunca ouvi um disco que misturasse tão bem fala e música. As vinhetas todas sobre a experiência da negritude nos Estados Unidos são extremamente expressivas e se integram sem esforço algum a uma música que é sempre doce, envolvente, pouco estruturada. E é o disco que deu origem ao mais lindo videoclipe que existe, o de Cranes In The Sky.

8. Wolfgang Muthspiel – Rising Grace. Qualquer grupo que conte com Brian Blade é um grupo dos meus sonhos. Este, além do Brian Blade, é daqueles raros grupos em que todos os integrantes me interessam individualmente (Ambrose Akinmusire, Brad Mehldau, Larry Grenadier), acompanho a carreira de cada um deles com cuidado. Juntos, eles fizeram um disco cheio de espaços, em que os solos são menores e menos importantes do que a interação geral de cada um com todos o tempo inteiro. Não é um disco de composições especialmente fortes. É um disco delicioso de se ouvir de madrugada.

7. Joshua Redman & Brad Mehldau – Nearness. Lá pela terceira ou quarta música me dei conta: cada um desses músicos está no topo do pico do auge do ápice de sua arte. E estão aqui, juntos, para nós. Transformando standards na música mais revolucionária que pode haver.

6. Carla Bley – Andando el Tiempo. Que senhora compositora. Gosto principalmente do tango que abre o disco, mas ouço tudo o que Carla Bley escreve com interesse e atenção. Imagino que ela tenha composto as músicas com esta formação em vista (piano, baixo, saxofone), mas não é difícil imaginá-las transpostas para formações maiores. Outro disco bom de se ouvir de madrugada.

5. Beyoncé – Lemonade. Que realização impressionante. Que força, que poder incomensurável esse de conseguir transformar em arte a mais manjada das narrativas – a experiência da mulher traída pelo marido vira uma viagem de ódio, autodescobrimento, amor, perdão. Tenho nem o que dizer. Obra magna mesmo. Musicalmente, visualmente, liricamente, tudo.

4. Paolo Fresu, Richard Galliano, Jan Lundgren – Mare Nostrum II. Trompete, sanfona, piano: formação linda, músicos belíssimos, temas memoráveis. Um clássico instantâneo da ECM, ainda que o disco tenha sido lançado pela ACT.

3. Knower – Life. Taí um nome apropriado. Knower = vida, pulsante, maluca, esquisita, escatológica, sexy, funky, deprimente, enraivecida, divertida. Knower ocupa hoje um lugar que já foi mezzo da Björk, mezzo de Prince & The Revolution. E eu não consigo imaginar minha vida hoje sem a enxurrada de timbres e grooves maravilhosamente precisos desse duo.

2. Chris Cheek – Saturday Songs. Provavelmente o disco menos badalado desta lista. Chris Cheek não é nenhuma jovem revelação do saxofone – é um músico experiente que fez um disco irretocável de maturidade, com um pedal steel delicioso e o cover mais lindo que um músico de jazz poderia sonhar em fazer de uma música do Tom Jobim. (Googla aí e descobre, ow)

1. Camila Meza – Traces. Lembro que um tempo atrás vi esse programinha que se propunha a descobrir sua provável idade, gênero e nacionalidade com base em seu gosto musical. A ideia era que semelhantes gostam de semelhantes – se você é branco, gosta de música feita por brancos, se é mulher, de música feita por mulheres, etc. Achei meio deprimente essa ideia e pensei que o programa, se eficaz, acabaria revelando minha real identidade de senhor norueguês de aproximadamente 60 anos.

Mas não este ano. Este ano, reparem, amo/sou uma mulher latino-americana de trinta e poucos anos que se chama Camila.

Camila Meza, uma chilena que toca guitarra e canta, já é uma das principais herdeiras do Kurt Rosenwinkel. A forma de tocar e cantar junto é muito influenciada por ele, com um reverbinho característico, e bem diferente do que faz um George Benson, por exemplo.

A banda tem o Kendrick Scott, cujos três discos como líder estão entre meus três discos preferidos deste século, e aqui com a Camila Meza ele não fez por menos.

As músicas da Camila abrem um espaço entre o jazz contemporâneo, a música brasileira e a música pop. É uma música de bastante complexidade que soa incrivelmente leve e falsamente fácil. São músicas que não estariam deslocadas em uma rádio de MPB, se é que isso existe. Em suma, é um jazz que ouvintes ~sérios~ desprezarão como bobinha – e que todos os outros saudarão com aquela alegria que só a música é capaz de despertar.

Master of Friendship

Estou encantada por Master of None. Acabei de ver o terceiro episódio e é tudo o que uma super fã de Seinfeld pediu aos céus. Parece-me que a maior diferença entre um e outro está no personagem do George Costanza – em Seinfeld tínhamos um magnífico loser, em MoN temos um homem charmoso e adorável. De resto, as semelhanças são imensas, só que tudo está adaptado para o nosso tempo, nossos problemas, novas pessoas, novas sensibilidades, enfim, estou amando.

E estou prestando atenção num negócio pela primeira vez. O grande marcador ficcional do programa é o fato de que quatro amigos na faixa dos 30 anos vivendo num grande centro urbano se encontram várias vezes na semana simplesmente para jogar conversa fora. Há dez anos, quando eu via Seinfeld, Friends e Sex and the City, isso não me chamava a atenção. Hoje sim.

Meus raros amigos e eu penamos para agendar um café durante a semana – conciliar a agenda de duas pessoas em São Paulo já é um desafio considerável. Quatro, a não ser que se trate de uma ocasião especial (aniversário, casamento, festa do filho de alguém), é coisa para profissional. A última vez que encontrei com três amigos para jogar conversa fora faz uns quatro meses e todos concordaram que era mais provável alguém ganhar na megasena do que um almoço como aquele se repetir nos próximos seis meses. (Até aqui, lamentavelmente nenhuma dessas possibilidades se concretizou.)

Mas em Master of None, eles se encontram num café para discutir a vida amorosa de um deles; dias depois, tornam a se encontrar num restaurante; mais um ou dois dias, as mesmas quatro pessoas se reencontram para ver Sherlock na TV. Se Godzilla tivesse feito uma participação especial no episódio, o efeito seria mais realista.

Este post não é, pelo amor de Godzilla, uma crítica ao programa – nem, aliás, a mim e aos meus amigos que só nos encontramos bem de vez em quando. É só uma constatação mesmo. Quanto mais as pessoas se aproximam da e ultrapassam a barreira dos 30, mais as prioridades ficam sendo trabalho/família/grupos de whatsapp. Os amigos acabam vindo em quarto ou quinto lugar.

Os amigos são tipo o Ciro ou a Marina na próxima eleição presidencial.

Por sorte, na TV os amigos ainda se encontram. E aí a gente assiste. Cada um da sua casa.

Frim Fram Sauce

Supermercado quase dez da noite e todo mundo com cara de tô-morrendo e tô na fila tá chegando minha vez quando de repente soam nos falantes:

“I don’t want French fried potatoes, red ripe tomatoes…”

Meu disco preferidíssimo da Diana Krall, de 1996, da Impulse, o segundo dela, um disco sem nenhuma pretensão, nenhum malabarismo, nenhum grande conceito que não o manjadíssimo conceito de tributo, um tributo ao Nat King Cole, que para quem não conhece é uma espécie de Cartola do Norte, mas voltando, é um disco de trio piano-baixo-guitarra, isso mesmo, pois assim era o trio do Nat King Cole, todo mundo tocando MUITO, Diana Krall tocando piano lindamente e fazendo solinhos memoráveis, ou vai ver não são nada memoráveis e eu memorizei tudo só porque ouvi esse disco loucamente na minha adolescência, e essa música em particular, ESSA música, é sobre uma mulher que gosta de comer, e não se sabe se é mesmo de comer que ela gosta, se ela gosta de umas comidas imaginárias, ou se ela gosta mesmo é de sexo, mas o que se sabe com certeza é que chegou a minha vez na fila do caixa e o seguinte diálogo ocorreu entre eu cantando a plenos pulmões e gesticulando loucamente a cada pergunta e a funcionária do supermercado cumprindo dignamente sua função:

“I’m never satisfied!”

“Cliente super-ultra-plus?”

“I want the frim fram sauce with the ossanfay, with shafafa on the side”

“CPF na nota?”

“I don’t want pork chops and bacon, that won’t awaken”

“Vai utilizar o crédito plus-ultra-super que a senhora tem acumulado?”

“My appetite inside!”

“Aperta três vezes pra cancelar, por favor”

“I want the frim fram sauce with the ossanfay with shafafa on the side”

“Sacolinha?”

“Well you know a girl, she really got to eat”

“Vou colocar os pontos pra você”

“And a girl she should eat right”

“Crédito ou débito?”

“Five will get you ten”

“Tá participando da promoção?”

“I’m gonna feed myself right tonight!”

Sim, eu estava participando da promoção e a promoção consiste em que você gasta vinte reais e ganha uma figurinha para colar na cartelinha pois é assim que nós adultos responsáveis brincamos de álbum de figurinha, e no fim do álbum após deixar aproximadamente vinte mil reais no supermercado ganhamos uma faca que procurando bem deve custar uns trinta reais na Liberdade –

– aí que esta noite gastei quarenta reais no supermercado;

– aí que a funcionária me deu QUATRO FIGURINHAS!!!

Em outros dias, outros momentos, eu diria que a funcionária ficou tão atordoada e de saco na lua com a cantoria toda que nem sabia mais o que estava fazendo e se confundiu no cálculo das figurinhas;

Em outros dias, ainda, eu diria que a funcionária distribui figurinhas extras de propósito como parte de um estrategema infalível e secreto de levar o supermercado à falência;

Em outros dias, por que não, eu diria que a funcionária não está nem aí pra porra de figurinha nenhuma e as distribui sem critério algum;

Mas hoje, esta noite, eu escolhi acreditar que ganhei duas figurinhas a mais porque a funcionária gostou de me ouvir cantando.

Ganhei um Grammy em forma de um centésimo de uma futura faca <3

Qual a sua relação com a música?

Querida A.,

Sabe quando as pessoas dizem que a música do Cantor A ou da Banda X é “a trilha sonora da minha vida”? Quer dizer – existe uma vida no centro de um palco, e uma musiquinha tocando lá atrás?

Comigo, é bem isso que acontece – só que exatamente ao contrário.

Houve uma época em que eu alternava dois discos no carro. Um de violão de aço solo e um de trio (guitarra, baixo, bateria) e voz. Eles sempre me pareceram discos-irmãos, ainda que distantes no tempo e no espaço – harmonias enganosamente simples, afinações diferentes, um sentimento de amplidão.

Havia esses dois discos, naquela época, e havia uma vidinha de fundo – no caso, a minha.

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Não entendo essa necessidade de um conceito de Deus (não o Deus-Barbudo, mas o Deus-que-está-em-todas-as-coisas) quando já existe a música.

Mas música não tem nada de etéreo e inefável. É concreta como um tijolo e excita o corpo – assim como comida e sexo. Você pode encontrar significados místicos variados em uma torta de chocolate ou uma transa, mas nos dois casos é o seu corpo que está ali, experimentando aquela maravilha toda.

E no entanto existem os pecados da gula e da luxúria, mas não existe o pecado de entregar-se languidamente à música sem comedimento ou moderação.

Eu decididamente não entendo as religiões.

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O único método confiável de estudo que desenvolvi além do tradicional “grifar e pôr estrelinha nas partes importantes” me foi ensinado por minha professora de piano, quando estudávamos peças a várias vozes. Ela me ensinou a colorir cada voz, para que eu as visualizasse separadamente e não partisse do pressuposto de que havia as vozes da mão esquerda e as vozes da mão direita.

Uma voz faz o caminho que ela própria dita, não o caminho mais conveniente para a minha mão.

E é colorindo que estudo qualquer coisa que me pareça importante. Identifico diferentes temas – vozes –, atribuo-lhes cores, e observo como eles conversam entre si, como se imbricam e passam de um parágrafo para o outro.

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Morrer deve ser um sofrimento por causa das pessoas que a gente deixa. Mas essa parte da morte pelo menos é democrática e não me parece particularmente injusta – atinge a todos igualmente.

Agora, quando penso que jamais ficarei sabendo da música produzida no século cento e vinte um, me sinto pessoalmente injustiçada e ofendida.

Que melodias serão produzidas no século cento e vinte um? Por quais homens, quais pássaros? Até quando homens e pássaros cantarão?

Por outro lado, quando penso que tenho acesso fácil a toda música gravada já produzida, me sinto agraciada por uma sorte injustificável e imerecida – então empatou.

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Tenho uma visão muito limitada da música. É uma visão basicamente horizontal, melódica. Sou ótima com melodias, tenho facilidade para aprendê-las e decorá-las – e uma dificuldade desalentadora com todo o resto.

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De criança, minha mãe me incentivava a prestar atenção a cada um dos instrumentos. “Agora canta o baixo”. “Agora canta a flauta.” “Agora o violão.” Mas ela nunca me ensinou a cantar a bateria, uma falha imperdoável na minha formação.

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Depois de velha, desenvolvi um respeito por hits de ídolos adolescentes que eu não tinha quando era o público-alvo desses ídolos. Talvez porque hoje eu entenda um pouco melhor o esforço, o trabalho, o gigantesco investimento que há por trás de cada hit.

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Tem esse vídeo fofo sobre meditação, em que um monge/mestre/guru bem-humorado diz que meditar é dar uma missão para o macaquinho mental que está o tempo todo pensando nas contas a pagar, no almoço a preparar, no capitalismo a derrubar, etc. Ao meditar, a missão que você dá ao macaquinho é: foque na respiração. Inspira, expira, inspir… “a fatura do cartão!”, EXPIRA, macaquinho, inspira, e assim vai.

Mas por que eu daria uma missão tão enfadonha para o meu macaquinho quando posso simplesmente pôr um disco para tocar?

Música é a missão preferida do meu macaquinho. Ele fica bem quietinho, impressionado, de olhos arregalados, e não se ocupa de mais nada enquanto a música durar.

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Eu não sei o que fazem os homens que se veem sozinhos no mundo com uma filha de dez anos. O meu me levava para ouvir música, pelo tempo em que vivemos juntos.

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Não sei se respondi à sua pergunta. Se você fosse winnicottiana, eu teria lhe respondido com o maior dos clichês – a música é meu Objeto Bom –, mas como graças a Deus você não é, tive de fazer como meus músicos preferidos e improvisar.

Um País Sério

Sim, eu sei, o Brasil e tal, mas permitam-me ser colonizada um minutinho –

Cês tão acompanhando os e-mails do Juninho?

Todo o governo Trump vem negando há meses a existência de qualquer tipo de coordenação entre a campanha trombística e o governo russo – “é tudo uma fantasia conspiratória de liberais recalcados floquinhos-de-neve-caviar”…

Aí, gente, o Juninho – filho do presidente.

Ele, o marido da Ivanka e o cara que coordenava a campanha se encontraram com uma advogada russa um ano atrás. Até aí, grandes coisas, qq tem, não pode mais ter amigo russo agora? Etc. Afinal, eles se encontraram para discutir um programa de adoção de criancinhas russas, poxa.

Pergunta daqui, pressiona dali, Juninho divulgou hoje os e-mails que levaram ao agendamento daquela reunião.

A linha de assunto do e-mail: “Russia – Clinton – particular e confidencial”

E segue o primeiro e-mail: “Migo Juninho, o governo russo apóia o seu pai e por isso quer compartilhar com vocês uns lances comprometedores da Hillary. Cê qué?”

A resposta dele, e eu não estou brincando, é praticamente aquele slogan imbecil do McDonalds – “amo muito tudo isso”.

O bom de acompanhar a política estadunidense é que isso nos permite rever a instituição País Sério.

Sabe quando a gente vê o deputado correndinho com a mala e pensa, num País Sério isso não aconteceria?

Clube das construtoras – num País Sério, algo já teria sido feito há muito tempo?

Reforma trabalhista escrota – num País Sério, isso aí nem pensar?

O País Sério, de Homens Competente, Honrados e Probos, certamente existe – apenas não neste século, nem nos anteriores, nem neste continente, nem em nenhum outro.

Alarme falso

Existem três teorias sobre a morte de Amelia Earhart.

(Se você não sabe quem é Amelia Earhart certamente não sabe quem é Joni Mitchell, portanto volte umas mil casinhas na vida e tome tento, por favor.)

Um: acidente do avião que ela pilotava.

Dois: ela foi capturada por japoneses que acharam que ela era espiã, e morreu na prisão. Um cara achou uma foto dia desses que parece dar sustentação a essa teoria.

Três: ela morreu numa ilha deserta onde seu avião caiu. Um outro cara vai levar uns border collies farejadores até essa ilha para tentarem achar uns restos de ossos dela. Se os ossos forem encontrados, teoria confirmada. Se não… Teoria não-refutada. Afinal, muita coisa pode ter acontecido com os tais ossos em oitenta anos.

Fiquei horas e horas angustiada com essas teorias e possibilidades. Para qual teoria eu deveria torcer? Qual morte seria a menos pior? Devo torcer contra ou a favor dos cães farejadores?

Torcemos por mil eventos futuros sobre os quais não temos nenhum controle, e sabemos disso, e tudo bem, porque pelo menos os eventos são futuros e podemos compará-los com a torcida ou palpite, os juros subiram, o Parmera perdeu, um imbecil foi eleito, e eu sempre, sempre posso ter uma ilusão íntima e não-dita de que foi a minha torcida (ou falta dela), no fundo, que fez toda a diferença.

Mas o que dizer da torcida por um evento passado?

Enquanto estou torcendo para que Amelia tenha morrido de um e não de dois, ela já morreu.

O dia de 24 horas

Uma das grandes mentiras que nos contam é que o dia tem 24 horas.

Para o seu dia ter 24 horas, é preciso ser relativamente jovem, sem filhos e com preocupações financeiras que se limitem a “peço caipirinha com vodka nacional ou importada?”.

Aos cinco anos de idade, o dia tem aproximadamente noventa e seis horas. Toda experiência é de vida ou morte, pois toda experiência é quase infinita. O chocolate que se toma, a massinha que se amassa, a mãe que se abraça, é tudo eternamente docinho, molinho e quentinho, não necessariamente nessa ordem. Por outro lado, quando o menino mau te tranca no banheiro da escola você fica lá para o resto da vida também. Ter cinco anos não é fácil.

Aos quinze, dezesseis, dezessete anos, o dia já é um pouco menor, mas ainda dá para fazer bastante coisa. Nas cerca de setenta e duas horas do dia, é possível ir à escola, estudar a tarde inteira, dormir a tarde inteira, ver televisão a tarde inteira, ir ao shopping com os amigos, pensar se ele gosta de mim, ligar para ele e desligar correndo, chorar porque ele não gosta de mim, ficar com o melhor amigo no telefone a madrugada toda – tudo isso em umas trinta e seis horas horas. As trinta e seis horas restantes você emprega em questionamentos acerca das suas reais chances de algum dia fazer sexo na vida, que você sempre conclui serem um pouco maiores do que participar de uma Olimpíada, porém um pouco menores do que ganhar um Oscar.

As horas do dia diminuem drasticamente no momento em que se inicia um curso de graduação. É um mundo novo, repleto de pessoas novas com histórias de vida totalmente diferentes da sua – mas todos estão passando pelo mesmo processo de encolhimento do tempo. De repente, pela primeira vez, é preciso fazer escolhas. As quarenta e oito horas do dia não são suficientes para ir a todas as festas e estudar para todas as provas. É preciso selecionar os bares, as matérias, os amores, os trabalhos, as drogas, as músicas e as pessoas às quais você quer se dedicar. Mesmo assim, em um só dia ainda era possível desenvolver razoável número de atividades. Eu, por exemplo, costumava passar umas oito horas por dia ouvindo música, oito estudando e trabalhando com psicologia e oito parada no trânsito da marginal. Nas outras vinte e quatro horas, eu me dedicava com afinco a ser uma mocinha apaixonada e meio surtada.

É nessa idade, aos vinte e poucos anos, que você se dá conta pela primeira vez de que você não tem tempo. Os mais velhos dizem que você tem, mas secretamente você sabe que eles estão apenas sendo gentis.

Aos vinte e muitos, finalmente, o dia começa a ter cerca de vinte e quatro horas, e você já se conformou com o fato de que não irá cumprir nem com metade daquelas coisas que os livros da série antes-de-morrer exigem que você faça.

Tudo isso, naturalmente, muda num piscar de olhos com a chegada de um filho. Nesse caso, o dia inteiro se reduz a uma única hora.

Nada disso, por outro lado, se aplica se desde sempre e para sempre você tem de trabalhar o dia inteiro para comprar comida. O dinheiro é um dos maiores modificadores do tempo que há, não porque tempo = dinheiro, mas porque falta de dinheiro = tempo a serviço do que alguém determinou, não a serviço do que você quer, precisa ou gosta.

(O outro grande modificador é o amor, mas esse é mais complicado.)

Hoje, aos trinta e cinco e sem filhos, meu dia dura umas vinte horas, que passo basicamente trabalhando, lendo sobre a crise política nos EUA e a crise climática no mundo. Aos vinte e pouco anos, eu reclamava que não havia horas suficientes para ler todos os livros. Aos trinta e médios, já fiz o luto dos livros não-lidos – o que eu queria mesmo eram horas para dormir de verdade.

Ainda estou relativamente próxima do dia de vinte e quatro horas. Por enquanto, dias mais curtos parecem improváveis e inimagináveis.

Mas no fundo eu sei, todos sabemos, não nos enganamos – no futuro, não é que teremos quinze minutos de fama. Teremos quinze minutos, simplesmente. É o tanto que nossos dias irão durar.

Sete marinheiros americanos

Talvez vocês tenham lido, talvez não, que sete marinheiros americanos morreram em uma colisão com um navio japonês.

Bom – eu li. E, claro, sequer registrei a notícia. As pessoas nascem, crescem, fazem selfies e morrem, o que que eu tenho a ver com sete marinheiros americanos, etc.

Até que agora à noite vi uma foto dos marinheiros.

Calma que este não é um post sobre como de repente fui tocada no fundo do meu ser sobre a individualidade e a singularidade dos seres humanos e comecei a chorar loucamente por sete marinheiros americanos. (Não é, mas podia ser, claro – esse tipo de coisa acontece com todo mundo toda hora.)

Este é um post sobre – Jesus, não é incrível o tanto que a gente não sabe de nada?

Vi a foto e quase caí para trás. Os sete marinheiros americanos eram… Meninos. Saídos da escola. Carinha de vinte anos.

A foto me deixou quase ofendida. Mas como assim os sete marinheiros não são homens fortinhos de meia idade?

Foi quando, evidentemente, me dei conta de que, sem perceber, eu já estava plenamente convencida de que os sete marinheiros americanos eram sete marinheiros popeye.

Eu passo pelo mundo sem nem mesmo saber que tenho certeza de que algumas pessoas são marinheiros popeye, cebolinhas, scoobydoos.

Vovô-cama

Ontem meus primos e eu nos encontramos para jogar as cinzas do nosso avô no mar.

Não eram cinzas, na verdade. Eram uns pedregulhinhos de variados tons de cinza. Decidi que as pedrinhas-cinza-claro eram a parte do meu avô que a gente podia ver, e as pedrinhas-cinza-escuro eram tudo o que ia por dentro, órgãos, ossos, nervos, tudo o que fica por debaixo da pele. Como é bom ser de humanas.

A ideia era sair de lancha e jogar as cinzas-pedrinhas em alto mar.

Levamos para a lancha o potinho contendo um saquinho com aquilo que chamamos erroneamente de “as cinzas do vovô”. Aquelas cinzas nunca foram “do vovô”. Ele nunca as teve. As cinzas eram… Ele. Ao mesmo tempo que, claro, não eram. Restos do vovô? Vovô sublimado?

Mas a vida prática tem seu jeito maravilhoso de atravessar qualquer reflexão semântico-filosófica com suas questões tão bestas, tão essenciais. Como se joga as cinzas de alguém no mar? Jogaríamos as cinzas com potinho e tudo? Sem potinho, dentro do saquinho plástico? Só as cinzas e nada de saquinho ou potinho?

Um dos primos fez a excelente observação segundo a qual se nosso avô pediu para ser cremado e não enterrado, é que ele não queria ficar confinado em um espaço diminuto, portanto melhor seria tirá-lo do potinho, ainda que o crematório tivesse tido o cuidado de nos entregar as cinzas (… as cinzas? o vovô? as cinzas do vovô?… As reflexões semântico-filosóficas têm um jeito maravilhoso de se imiscuírem nas questões práticas mais bestas e essenciais) em um potinho biodegradável.

Foram meus primos que tiveram a ideia de jogar … … … no lugar onde meu avô gostava de pescar. Eu não fiz nada, não pensei em nada, só fui na onda deles.

Que onda.

Primeiro era só um compromisso na agenda. Acordar cedo, pegar estrada, lembrar de passar protetor solar.

Até que os primos todos se reúnem (a última vez foi quando? há uns cinco natais?), os primos todos entram no bote, levam um caldo, sobem na lancha, um dos primos dirige a lancha (atividade para mim tão inconcebível quanto tocar tuba ou fazer suspiro), e de repente não é mais um compromisso na agenda: de repente aquilo é um acontecimento.

Chegamos no lugar onde meu avô levava meus primos para pescar. Eu nunca ia. Ficava em casa lendo e fazendo palavras-cruzadas com a minha avó.

Cada um falou “umas palavras”.

Um primo disse que achava que a paixão dele pelo mar tinha vindo do vovô.

Comecei a chorar ali e acho que não parei até agora, apesar de que meu rosto está sequinho, sequinho.

Me senti bastante idiota dizendo a um pacotinho de pedregulhos: “obrigada por ter ido me buscar na escola”. Mas não era qualquer pacotinho de pedregulhos, não era qualquer dia e, principalmente, eu teria me sentido duas vezes mais idiota se não tivesse dito nada.

Passei bem mal. Enjoei loucamente. Pensei demais no Robinson Crusoe e no Gulliver, livros que li tão recentemente. Pensei na minha mãe, que não está no mar.

E pensei que não faz sentido nenhum dizer que alguém “partiu”. “Se foi”. “Deixou de existir.” Nada deixa de existir. Ninguém vai embora. A NASA ainda não inventou um método de jogar os restos mortais das pessoas no espaço sideral. Os mortos continuam aqui mesmo, neste mundo. Eles apenas não são mais o que um dia foram.

Meu avô nunca mais será meu avô, mas ele está lá, em Ubatuba. Cama para os peixes, ele virou.

All in the game

Dez, quinze anos atrás… Tanta gente com quem eu convivia e que hoje só vejo nas redes sociais, de relance, pipocando na minha TL. Há dez, quinze anos, essas pessoas e eu conversávamos basicamente sobre psicologia (especialmente psicanálise), música (especialmente jazz) e, sei lá, relacionamentos. (Alguns anos depois, séries de TV.) Mas eu nunca soube a opinião delas sobre nenhuma proposta de emenda à Constituição. E elas jamais souberam meu posicionamento sobre o voto distrital. Anos de convivência e relacionamento, e nada disso foi discutido. Claro que houve os anos neoliberais fora-FHC-FMI e privatizações e greves na universidade; mas essas coisas todas eram apenas mais uma área da vida, e não A Grande Área Geradora de Ansiedades de agora. Parece que, tempos atrás, certas coisas ainda não eram normais. Vivíamos sem a ameaça de ouvir que os vagabundos do bolsa família têm mais é que se fuder – “opinião” que hoje, em alguns círculos sociais (e não estou me referindo apenas a gente rica), virou mainstream. Não se trata de ficar ficar de frescurinha porque alguém disse algo politicamente incorreto e minha sensibilidade privilegiada não dá conta de ouvir altas barbaridades. Trata-se de constatar que foi elevado à categoria de opinião algo que é apenas ódio. E quando ódio vira opinião, e botamos a mãozinha no queixo e debatemos ponderadamente sobre o que fazer, afinal, com os vagabundos do BF – acabou. Já passou boi e boiada e vai passar a PEC.

Então é com espanto que vejo que eu e a maioria daqueles amigos mais próximos com quem perdi contato estamos basicamente no mesmo campo político. É curioso, porque jamais conversamos sobre isso naquela época. Mas cá estamos, dez ou quinze anos depois, a favor da saúde pública e universal, do direito à livre manifestação, do Estado laico e contra a violência policial. E por que não falávamos sobre nada disso? Porque éramos uns alienados e subitamente acordamos para a política? Acho que não. Acho apenas que tudo parecia óbvio. Para que perder tempo falando que, por exemplo, “a polícia não deve jogar bombas em manifestantes”? Que tipo de pessoa não concorda com isso?

Aparentemente, o tipo de pessoa que não mora na bolha. E de repente nada mais é óbvio. Então ficamos assim, tateando – tentando encontrar algum terreno comum. E falando sobre política – sobre aquilo que nunca foi óbvio – nas redes sociais.

***

Tomemos a figura do tiozão reaça do almoço de família. Onde estava esse tiozão há dez, quinze anos? A ansiedade com o iminente almoço de família é um fenômeno relativamente recente. O tiozão reaça costumava ser apenas o tiozão do pavê. E agora ele não é muito diferente do Presidente da República.

Parece que esse modus operandi chegou aos Estados Unidos. Tenho visto uma profusão de artigos sobre “como lidar com seu parente eleitor do Trump no almoço de Thanksgiving“. Brasil, exportador de laranja, soja e política do fim do mundo.

Stephen Colbert falou sobre isso lindamente no monólogo pós-eleição – sobre essa sensação de que, antes (quando, exatamente?), não nos preocupávamos com (ocupávamos de) política tanto assim.

E agora isso. Tornou-se normal e aceitável a nomeação de um supremacista branco para um cargo de confiança da presidência dos Estados Unidos. Parecia inconcebível mas it’s all in the game. Nada deve parecer impossível de piorar.

Quando o que parecia óbvio não é mais óbvio e o que parecia inaceitável torna-se o pão nosso de cada dia, é sinal de que ainda passaremos muito e muito tempo conversando sobre aquelas coisas das quais não falávamos dez ou quinze anos atrás.