Racismo no Quatro de Julho, de Brittney Cooper

[Tradução minha do texto “The N-word on the 4th of July”, de Brittney Cooper, publicado originalmente aqui.]

O voo que tomei para visitar minha família no feriado foi uma experiência dolorosa e aviltante. Eu tinha que dizer algo. Mas o quê?

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Embarquei em um avião quarta-feira de manhã, em uma corrida desenfreada de Jersey até a Louisiana para passar o feriado de Quatro de Julho com minha família. Tenho plena consciência da miríade de contradições envolvidas no fato de uma feminista negra radical ser uma entusiasta desse feriado. O Quatro de Julho, para a minha família, representa menos uma narrativa estadunidense de liberdade e justiça para todos (um ideal nunca plenamente realizado) do que um momento em que nos reunimos para desfrutar da companhia uns dos outros, fazer um churrasco no calor do verão da Louisiana e, através da mais pura alegria e celebração, oferecer uma pequena mas significativa versão alternativa sobre como nos emancipamos.

Mas a natureza complexa destas viagens de volta para casa geralmente se revela quando a agente de segurança do aeroporto decide que é necessário passar os dedos pelo meu penteado afro, em busca de “armas” não-identificadas. Desta vez, surpreendentemente, isso não aconteceu, e deixei escapar um suspiro de alívio quando a passagem pela segurança transcorreu sem incidentes.

Na fila de embarque, bem à minha frente, estava uma bela e tradicional família nuclear. A mãe era alta e deslumbrante, e tinha dois lindos filhos com cerca de 10 e 7 anos. Por algum motivo, eles tornaram-se objeto de minha atenção enquanto eu embarcava. A mãe gentilmente admoestava o menino mais velho a ler o livro de férias, certificando-se de que seus exercícios estariam disponíveis a bordo.

Enquanto embarcávamos, reparei que esta mãe e eu sentaríamos na mesma fileira, eu na janela e ela no centro. Enquanto aguardávamos a decolagem, terminei de escrever uma mensagem de texto e pedi à aeromoça um extensor de cinto de segurança, o melhor amigo do passageiro gordo. Então, bem no momento em que ouvimos o aviso para desligar os telefones, olhei para o lado de relance e ela ainda estava digitando uma mensagem de texto. Pesquei algumas palavras ao final da mensagem que me fizeram olhar com mais atenção: “tô no avião, sentada do lado de uma preta fedida [nigger] e balofa e a perna dela tá encostando na minha. Que sorte que eu tenho.”

Parei de respirar por um momento.

Então, senti dor. Humilhação. Constrangimento. Raiva.

Ainda me lembro da primeira vez em que fui chamada pela palavra “N”. Foi por volta de 1988, eu estava na terceira série. Minha colega de classe, uma pobre menina branca chamada Vicki, decidiu terminar uma briga infantil gritando “Sua PRETA FEDIDA [dirty nigger]!” Eu, na época com sete ou oito anos de idade, fiquei perplexa. E permaneci em silêncio. Nunca ouvira aquela palavra usada daquela forma antes. Não sabia o que significava. E, ainda assim, senti sua força e sua conotação cáustica de forma visceral.

Naquela mesma noite, me aproximei de minha mãe na cozinha enquanto ela servia o jantar, e perguntei: “O que significa a palavra ‘nigger’?” Antes que ela pudesse responder com palavras, simplesmente registrei sofrimento em seu rosto. Olhando retrospectivamente, vejo aquela dor como a dor de um pai ou mãe que se depara com o alcance inevitável dos problemas de outras pessoas, contra os quais você não pode proteger o seu filho. Era também a dor de uma mãe negra deparando-se com a inevitabilidade do primeiro encontro de uma criança com o racismo. Depois de perguntar por que eu queria saber, ela disse simplesmente: “Significa uma pessoa ignorante”.

Hoje, quando fui chamada pela palavra “N”, parte de mim sentiu-se como aquela menininha de novo. Senti o insulto de forma igualmente visceral, o pressentimento terrível de que havia algo de errado não com qualquer coisa que eu houvesse dito ou feito, mas algo de errado comigo, simplesmente. Imediatamente, senti-me extremamente vulnerável e insegura – olhei ao redor, sentindo-me marcada, pensando se os outros estariam achando meu corpo grande e minha pele escura tão desagradáveis quanto achava minha vizinha de fileira.

Sei que sou gorda. E fico especialmente apreensiva com isso em aviões, já que me preocupo em ocupar muito espaço. Na minha imaginação, sempre penso que as pessoas vão odiar ao me ver chegando, pois os americanos levam muito a sério o espaço pessoal. Não sou exceção a esta regra.

Ainda assim, eu estava completamente consciente, pelo menos em um nível intelectual, de que o problema era dela e não meu. Mas qual seria a minha reação? Embora ela mesma não fosse nenhum palito, era uma senhora branca, mãe, com filhos e um marido – todos os sinais de respeitabilidade da classe média americana. Além disso, ela escrevera aquelas palavras em uma mensagem de texto particular. Sou uma mulher gorda, negra, de pele escura. Se eu tivesse armado um escândalo e resolvido a questão como ela merecia, é bem provável que eu tivesse sido vista como uma ameaça terrorista. Especialmente na véspera do Quatro de Julho.

E este é o problema com feriados americanos: frequentemente eles mudam o foco e confundem a narrativa, de modo que vilões são vistos como benfeitores e vítimas são vistas como agressores. O Dia de Ação de Graças, em que o país comemora o genocídio de nativos agradecendo por gerações de riqueza construídas a partir do saque de suas terras, é um bom exemplo. O modo como os feriados americanos naturalizam as violências rotineiras que deram origem a esta república faz com que feriados como o Juneteenth, o dia em que comemoramos o verdadeiro fim de toda a escravidão nos EUA, sejam tão necessários.

O que, então, eu poderia dizer? Algo. Eu tinha que dizer algo. Mas o quê?

Comecei compartilhando as palavras dela em uma atualização de status no Facebook – em parte porque, recentemente, eu vira demasiados amigos, negros e brancos, prontamente defendendo Paula Deen, argumentando que seu uso da palavra “N” era o resultado compreensível de suas raízes sulistas, e seguramente um resquício de uma era passada.

No entanto, aparentemente esta jovem família, em que os pais pareciam ter trinta e poucos anos, era de um estado do norte. Então, depois de esperar um pouco e conter as lágrimas que brotaram logo que vi aquelas palavras, simplesmente chamei sua atenção e pedi-lhe para ler o status do Facebook em meu telefone.

Ela viu, emitiu uma espécie de grunhido de assentimento, e não disse nada. Então prossegui, em um tom de voz baixo: “Só quero que você saiba que suas palavras foram ofensivas. E espero que você não passe esse tipo de ignorância para os seus lindos filhos.” Ela respondeu secamente: “Eu não passo.”

Passamos o resto do voo para o sul juntas, ela sendo uma mãe zelosa para os filhos, eu rezando para que as sementes de ódio que ela está plantando não caiam em solo fértil.

7 comentários sobre “Racismo no Quatro de Julho, de Brittney Cooper

  1. Nossa Cam, a gente tinha esquecido: é tudo opinião. Eu tô aqui escrevendo um comentário depois de uma pessoa que deve achar que racismo é só opiniao e que a culpa é da vítima. Deve ser daquela gente que acha que Luana Piovani alguma deve ter aprontado para apanhar e que quando sabe de um estupro, a primeira coisa que pergunta é “Mas que roupa ela estava usando?”. A pessoa também parece achar que precisa vigiar o corpo dos outros, afinal ser gordo deve ser opção também. Então não vamos esquecer, tudo bem escrever e dizer coisas racistas se ninguém estiver olhando. A culpa é da vítma. Ser gordo, além ser opção, é culpa do gordo. Mas isso tudo é só uma opinião minha também…

  2. Boa a tradução – tinha já lido o texto original, um dos relatos, aliás, mais fortes que li sobre racismo ultimamente, justamente pelo cotidiano da coisa. Por me sentir tanto na pele. Ah, ser mulher negra – e gorda? é coisa que não consigo vislumbrar minimamente, a dor que se sofre, todos os dias. Aliás, para muitos, pelo que vejo, colocar sobre a vítima a culpa é algo que se ocorre tão, mas tão naturalmente… por trás disso? nada – é só o melhor mesmo a fazer… Tudo já tão entranhado. Quer ser tratada com respeito? ora, emagreça! não quer se chatear? deixe de ser enxerida! (quer dizer, uma preta-enxerida, isso sim.) não quer se chatear — feche os olhos. – Ela, depois daquela situação, especialmente dolorosa, ainda assim conseguiu dar tal resposta, tão certeira. E, bom. Quanto as sementes, penso que serão plantadas, sim. O que não significa que vinguem, não é. Se é que eu entendi a metáfora, haha.

  3. Camila, moro em uma cidade onde a maior parte da população é negra e quase sempre observa-se esse tipo de situação descrito no texto. Em 1977, tinha 12 anos estudava no Piauí(para muitos, estado pobre e atrasado) mas foi lá que escutei a melhor e mais linda história sobre ser negro. Fomos a uma sorveteria no intervalo das aulas, e meu amigo pediu um sorvete e o atendente que servira a todos em suas preferências, atendeu a ele de forma grosseira e discriminativa, e um cliente que lá se encontrava disse: o que isso quer? não se enxerga? tá exigindo o que? e quis chamar atenção de todos ao dizer que além de preto é pobre. Meu amigo chegou perto dele sorrindo e disse: Se isso é tudo que conseguiu aprender em todos esses anos é uma lastima, pois o Criador quando nos fez, foi com dois olhos, pois Ele tinha certeza que um não seria suficiente para ver a beleza que Ele criou para nós, dois ouvidos, pois na vida escutaríamos até aos infelizes, porém apenas um coração, por que a decisão do que guardaríamos dentro dele era apenas nossa e servirá de alicerce até mesmo para quando criticamos alguém ou alguma coisa. Guardei isso no meu coração junto ao que meus pais ensinaram-me e todas as vezes que observei um preconceito comigo que sou branca, lembrava do amigo de 1977, e do quanto aprendi com a família dele que me recebia em casa como um deles, gente, sem diferença alguma e me diziam: não são eles que te discriminam, eles apenas tentam te tratar mal porque é o que aprenderam e decidiram continuar a fazer, a decisão de receber a ofensa é sempre nossa, quando você ignora, o que fica à mostra é a educação do ofensor, por mais que estude a cegueira não permite que perceba que boa educação não está na cor, mas no coração. Ah! comentando o texto de humanas, a profissão é escolha de trabalho, não pode ser de vida. Meu pai era analfabeto e um dos homens mais ricos de dinheiro e caráter que conheci. O primeiro preconceito (pré conceito) parte de nós.

  4. Me sinto um pouco desconfortável (mas não surpreso) ao ler comentários agressivos às suas postagens, mas você recebe comentários agressivos, já percebi. Então, acho muito bom que aprove os comentários agressivos. Mostra elegância, fineza de trato. Não que faça diferença para o comentador agressivo, mas até aí não acredito que você escreva para eles ou por eles ou por causa deles. Abraço.

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