Cabô o mito da cordialidade?

Olhei meio rápido para esta pesquisa e não entendi muito bem a comoção que ela está gerando. Achei que fosse apenas mais uma a confirmar aquilo que eu e você já sabíamos: que a violência lava-que-cobre-tudo no Brasil é sempre minimizada, atenuada, justificada, “mas pera lá”, “não é bem assim”, “você está exagerando”, “deixa disso”, “anistia ampla, geral e irrestrita para os assassinos da ditadura”.

Do tipo: o racismo até existe no Brasil, claro – mas não aí onde você está vendo (e sobretudo não em mim, jamais!), isso que você está dizendo é um problema socio-econômico e não racial.

Ou: alguns militares realmente torturaram durante a ditadura – mas no geral, fala sério, nossa ditadura foi uma ditabranda, poxa!

Ou: a polícia às vezes exagera na violência, é óbvio – mas esses vândalos infiltrados também fazem por merecer, né?

Analogamente, achei que, nesta pesquisa, as pessoas fossem dizer que a violência contra a mulher é errada (claro que sim!) – mas essas piriguetes também usam umas roupas enfiadas no útero que até parece que elas estão pedindo, não?

Não: aparentemente, as pessoas não acham nem mesmo que a violência contra a mulher é errada.

As pessoas – 2/3 delas – acham que “mulheres que usam roupas que mostram o corpo merecem ser atacadas”.

Deixemos as roupas de lado por um instante para ter a real dimensão do horror:

Mulheres. Merecem. Ser. Atacadas.

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O mito da cordialidade sempre fez todo o sentido para mim; sempre informou minhas tentativas de entender quem somos. Esse “não somos racistas” / “não somos violentos” / “somos uns fofos” que recobre a abissal violência da nossa sociedade sempre foi uma característica definidora, para mim, do que é “ser brasileira”.

Mas, ultimamente… Estou com a impressão de que o tal mito da cordialidade não está se aplicando mais, viu.

Parece que o mito diz respeito a outra era. Parece que, cada vez mais, estão caindo as máscaras. Não há uma tentativa (ainda que mal-sucedida) de disfarçar ou minimizar as violências. Não há mais pudor; não há mais um ímpeto de dizer que o horror, na verdade, era outra coisa, nem-tão-horrível-assim.

É isso: parece que não há mais pudor. Ao contrário, há o *orgulho* do horror. A afirmação da violência em todo seu esplendor.

Há os adolescentes amarrados em postes. O leilão para comprar armas para atirar em índios. As mulheres que, descubro agora, devem ser atacadas.

Não estou sabendo direito o que pensar. Só sei que estou com vontade de usar shortinho e minissaia pelo resto do ano agora. Como ato político mesmo.

O Texto Imbecil de Comportamento da Semana

Acontece toda semana: de repente, a internet inteira fica tomada por um Texto Imbecil de Comportamento. Onde quer que você clique, encontrará alguém para criticar e taguear de #absurdo e #ridículo o Texto Imbecil de Comportamento – dando link para ele e aumentando a receita do jornal, é claro, porque você consegue ensinar uma pessoa a fazer cálculo integral, a fazer curativo em gato, a fazer pudim, mas não consegue ensinar esta mesma pessoa que dar o link para o Texto Imbecil de Comportamento da Semana não é exatamente uma boa ideia. Mas divago: meu ponto é que o Texto Imbecil de Comportamento da Semana está presente de alguma maneira em várias das abas do seu navegador e o jornal está feliz.

O Texto Imbecil de Comportamento da Semana difere do Texto Imbecil de Política da Semana porque sempre haverá alguém entre seus contatos permeável a estes últimos: pouco importa que Dilma Rousseff coloque o Exército nas ruas durante a Copa, para o seu tio-avô ela será eternamente a terrorista black bloc comunista dona-marta-do-petê.

Mas com o Texto Imbecil de Comportamento, ninguém é capaz de concordar ou de apreciar. Não se trata de um texto polêmico – o Texto Polêmico da Semana é outra coisa. O Texto Imbecil de Comportamento é apenas isso: imbecil. Ninguém elogiou, ninguém aplaudiu, ninguém gostou – todos compartilharam. O Texto Imbecil de Comportamento gera um sentimento ímpar de pertencimento e comunidade: se todos podemos concordar que este é mesmo um Texto Imbecil, então a humanidade não vai tão mal assim – haverá salvação para nós.

Chega o momento, então, em que você se pega querendo participar desta bonita festa promovida pelos Odiadores Oficiais do Texto Imbecil. Você também quer ler e odiar o texto, assim como todos os seres humanos normais. Você  quer mostrar que é mais inteligente que o Autor. Você quer poder exprimir seu pasmo, revolta e indignação ao constatar que o Autor do Texto Imbecil de Comportamento da Semana tem mais seguidores do que o Autor do Texto Maravilhoso sobre o Amor, a Verdade e a Vida do Ano.

Então você clica no link para o Texto Imbecil, gerando receita para o jornal.

Você lê um parágrafo.

Lê dois.

E enfim se pergunta:

Por que raios estou lendo um Texto Imbecil?

Então, de repente, pela primeira vez – aleluia! -, você larga o Texto Imbecil no meio e fecha a aba.

***

É difícil, gente, eu sei. Tenho anos de procrastinação internética nas costas e é a primeira vez que consigo interromper a leitura de um Texto Imbecil de Comportamento depois de meros dois parágrafos. Estou contando isso não para me gabar (mentira, estou sim – beijinho no ombro, etc.), mas fundamentalmente para lhes assegurar de que, se eu consegui, vocês também conseguem.

Para comemorar este glorioso momento de arremesso-da-cocaína-pelo-ralo, compartilho agora o Texto Maravilhoso, senão do Ano, certamente desta Semana.

Passando cheque de papel sulfite

Chegaram-me notícias de que uma criança conhecida minha, de dois anos e pouco, pediu à mãe, numa fala inédita, que passasse o cartão. Desnecessário dizer que elas estavam em uma loja de brinquedos e a mãe dissera que não tinha dinheiro para comprar a nova Barbie Borboleta.

Eu era um pouco mais velha do que essa criança quando meu pai me explicou o conceito de cheque pela primeira vez. Claro que na mesma hora fiz-lhe um cheque de um milhão de cruzeiros (ou seriam cruzados?), para que ele investisse na empresa cuja situação financeira era motivo de preocupação constante.

Nem eu nem a menininha da Barbie fizemos qualquer coisa de especial. As crianças relativamente bem de vida aprendem muito cedo que dinheiro, no mundo, é o que não falta – só que às vezes calha de ele não estar disponível justo no momento em que mais precisamos dele. Para esses momentos, felizmente, os adultos inventaram dispositivos mágicos conhecidos como cheque (para as ex-crianças) e cartão (para as crianças atuais). O cheque e o cartão restauram a ordem do mundo, repondo o dinheiro provisoriamente faltante e sustentando a existência de Barbies e empresas familiares, conforme o caso.

Mas então cresci e percebi que meu pai não pôde sacar o cheque? A menininha crescerá e perceberá que não adianta ter cartão quando não se tem dinheiro?

Mais ou menos.

Algumas crianças realmente percebem e aprendem. As únicas que realmente aprendem que o dinheiro é um recurso limitado que não pode ser evocado magicamente por uma varinha de condão são aquelas que não dispõem de um banco familiar ao qual possam recorrer em caso de necessidade.

Outras, entre as quais me incluo, nunca aprendem efetivamente que o dinheiro pode acabar e, neste caso, não há cheque de um milhão que resolva. Não, não estou falando de deficiências cognitivas graves: sei muito bem a diferença entre um cubo card e um real, muito obrigada. Estou falando de outra coisa. Estou falando que, no meu mundo, o dinheiro nunca vai de fato acabar completamente. Mesmo que eu decida “viver uma vida mais livre”, largar o doutorado e fazer um mochilão pelo Tibet, nunca realmente correrei o risco de passar fome por falta de dinheiro. Sempre há familiares para quem poderei ligar. E o fato de que essa possibilidade existe é um acontecimento importante por si só – ela não precisa se materializar para produzir efeitos*. Eu posso ir para o Tibet e passar fome porque gastei todo meu dinheiro, claro. Mas sempre terei passado fome porque escolhi não pedir ajuda para ninguém. Eu poderia simplesmente ter pedido: passa o cartão, vai.

A fome – talvez o significante máximo da falta de dinheiro em nossa sociedade**, o que por si só já revela muito sobre nós: estamos convencidos de que só é possível se alimentar com coisas compradas no supermercado –, portanto, não me é uma possibilidade psicologicamente real.

A menina que fez o cheque de um milhão para o pai ainda está bem viva em mim – e acredita, goste eu disso ou não, que o pai sempre poderá fazer um cheque de um milhão para ela.

***

Agora imagine como seria se todos, e não apenas alguns, tivessem a mesma relação com o dinheiro que fui ensinada a ter?

Indo um pouco além – como seria se todos tivessem uma relação com o dinheiro exatamente como a da menina de 2 anos para quem basta passar o cartão, ou da menina de 5 para quem a solução para todos os problemas passa por um cheque de um milhão rabiscado em papel sulfite? Já imaginou?

Substitua “dinheiro” por “água” e não será preciso imaginar mais nada. Substituindo “dinheiro” por “água”, você terá o Brasil.

***

Tem as pessoas que insistem em lavar o carro em plena seca da Reserva Cantareira. Estas, é verdade, estão bem próximas do funcionamento mental das crianças para quem o dinheiro é mágico. E tem as pessoas que, como eu, até pararam de lavar o carro e se assustam quando leem que o nível está abaixo de 15% – mas se tranquilizam involuntariamente quando leem que esses 15% representam alguns trilhões de litros de água.

(Não sei vocês, mas eu tenho muita dificuldade de acreditar, acreditar de verdade mesmo, que qualquer coisa que chegue a “X trilhões” possa um dia acabar.)

Estas pessoas estão muito mais próximas do funcionamento mental das crianças – e do cara que lava o carro – do que parece. Para início de conversa, elas não estão fazendo racionamento de água (deixar de lavar o carro não é fazer racionamento, sinto muito – é apenas bom senso).  

Só vou acreditar que estamos realmente preocupados com a Reserva Cantareira quando começarmos a armazenar a água do enxágue da máquina de lavar.

***

Para entender nossa (desastrosa) relação com a água, vale a pena olhar para a (desastrosa) relação dos índios com a cachaça. Cito Eduardo Viveiros de Castro:

“O capitalismo apresenta aos índios uma coisa que eles nunca tiveram: o infinito mercantil. Os objectos não acabam nunca. Você tem uma quantidade infinita de cachaça. É como se chegassem aqui marcianos que nos dessem soro da vida eterna. Os índios não entendem e consomem, consomem, consomem. Eles produziam pouco para ter tempo livre. O que acontece agora é que continuam produzindo pouco mas os produtos chegam em quantidade infinita.”

Impossível não lembrar da marchinha de Carnaval:

“Você pensa que cachaça é água? / Cachaça não é água não”

Não, não pensamos que cachaça é água. Pensamos que água é cachaça. Consumimos água como se ela fosse um bem eterno e infinito. O capitalismo é uma espécie de cristianismo da matéria, no fim das contas. O cristianismo nos ensina que o espírito é eterno – o capitalismo, que os recursos naturais são inifinitos, eternamente à nossa disposição.

*** 

O engraçado é que o senso comum atribui o pensamento mágico aos índios, um bando de gente doida que faz dança da chuva. Nós, não: somos lógicos e racionais, sabemos que a chuva resulta da evaporação da água.

E nós, que somos tão lógicos e racionais, temos como “plano C” para a Reserva Cantareira (pois o B, que é extrair a raspa do tacho da reserva, já está sendo colocado em prática) a estratégia de torcer para que chova.

Não é preciso conhecer o que quer que seja sobre os índios para notar que, quando o assunto é água – e recursos naturais de forma geral –, quem tem pensamento mágico somos nós, não eles.

Nós é que tratamos os recursos naturais magicamente, assim como as crianças tratam o dinheiro – como se sempre fosse haver mais e mais recursos nalgum lugar, bastando passar o cheque ou o cartão para que o dinheiro chegue na nossa conta e para que a água jorre na nossa torneira.

O alcoolismo entre os índios, se entendi bem, deve-se em larga medida à introdução de um objeto infinito em um mundo até então povoado por recursos limitados.

Parece-me então que os índios, mais do que nós, sabem que os recursos naturais acabam – daí o choque diante do “recurso infinito” que é a cachaça. Para nós não-índios, a Terra continua existindo em um plano (na acepção geométrica do termo), sem contornos e sem limites. Não existe o conceito de “água acabar”. Existe o conceito de “eu tô pagando”. Se estou pagando a conta direitinho, então a água tem que vir.

***

Foi morando nos Estados Unidos, em uma casa cujo banheiro não tinha ralo, que aprendi que era possível lavar todo um banheiro com apenas meio balde d’água.

Se você morou no Brasil a vida inteira, posso imaginar o que você está pensando. “Ah, vá! Gringo é tudo porco. Duvido que ficava limpo de verdade. Banheiro limpo é banheiro em que você despeja três, quatro baldes d’água – chuááá!”. 

***

Outro dia a síndica do meu prédio conclamava os condôminos, por meio de uma nota afixada no elevador, a poupar o “precioso líquido”.

Eu ri, claro. “Precioso líquido”, jura? Menos, né?

Um beijo, querida síndica. Eu sou uma idiota.

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Sempre que surge uma ameaça de racionamento de água, fugimos dele como se ter menos água para lavar o banheiro fosse uma tremenda humilhação. E mais – pensamos em um eventual racionamento em termos de risco eleitoral. “Vai pegar mal pro Alckmin, vai pegar mal pra Dilma se rolar durante a Copa.” Não pensamos no consumo reduzido de água como um dado objetivo em um mundo onde os recursos são limitados.

Quando ameaça faltar água, nossa reação – a começar pelo governo – é semelhante à que eu tive quando meu pai me explicou a precária situação financeira de sua empresa. A resposta à crise é passar um cheque de um milhão em papel sulfite acreditando que será suficiente.

Acho que nada se parece tanto com o cheque de papel sulfite das crianças quanto a proposta de, em vez de economizar água, ir buscá-la mais longe. É o mesmo princípio nos dois casos: o recurso (dinheiro / água) não está aqui agora, é verdade, mas tem mais lá longe! Basta passar um cheque / ir lá buscar.

Que os deuses indígenas tenham piedade de nós.

 

* Mais ou menos como um relacionamento que se coloca a priori como aberto: antes mesmo que qualquer pessoa do casal saia com outros parceiros, essa relação já é necessariamente diferente de uma outra em que tal possibilidade é um tabu. A possibilidade, independentemente de sua concretização, institui uma realidade outra.

** Lembremos que o Programa Bolsa Família, de distribuição de renda, é sucessor do Programa Fome Zero.

Garis que escrevem bem

Li a carta da comissão de greve dos garis do Rio de Janeiro (aliás – leiam-na).

Minha primeira reação não foi de apoio às justas reivindicações.

Minha primeira reação foi de comentarista de portal.

Minha primeira reação foi “nossa, até que a carta tá bem escrita para um bando de garis!”

***

Então me lembrei de outra primeira reação.

Minha primeira reação após as primeiras páginas de Disgrace, do escritor sul-africano J.M. Coetzee (aliás – leiam-no), não foi de nocaute por tantas palavras dispostas em ordem tão perfeita e precisa.

Minha primeira reação foi “nossa, existem universidades na África!”

Minhas primeiras reações, como se vê, não costumam ser exatamente perspicazes.

Mas elas têm a vantagem de ser tremendamente instrutivas.

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Lembro direitinho das ameaças feitas a uma criança da minha família que perigava repetir de ano. “Se não estudar, vai virar gari!” Sim, a criança repetiu de ano. Não, ela não virou gari. Minha família é de classe média, afinal.

***

Lembro igualmente bem da primeira vez que fui para os Estados Unidos – ou melhor, para a Disney, como toda boa criança paulistana de classe média – e fiquei escandalizada com relatos de americanos que achavam que vivíamos na floresta amazônica disputando espaço com os macacos.

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Eu gostaria de acreditar que os macacos da floresta são um detalhe meramente acidental nestas minhas associações desconexas.

Mas a lembrança de outro acontecimento desta semana – o árbitro negro que foi chamado de macaco e ganhou bananas de torcedores – me obriga a reconhecer que não.

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A ideologia da meritocracia não subsiste no Brasil sem o racismo. Porque para acreditar que o patrão é aquele que estudou e se esforçou mais e o empregado é aquele que estudou e se esforçou menos, é necessário acreditar que, de modo geral, brancos estudam e se esforçam mais do que negros.

É necessário acreditar que negros estão mais próximos dessa coisa instintiva, primitiva, natural, animal, passional, corporal, básica, selvagem. Essa coisa-instintiva-e-selvagem característica dos negros, muito mais próxima dos macacos que dos seres humanos, certamente não combina com universidades nem com “profissões em que se usa o cérebro” (como se, aliás, de corporal o cérebro nada tivesse).

É necessário acreditar nessa “corporeidade” intrínseca dos negros, e acreditamos – haja vista minha primeira reação à carta dos garis (“ora bolas, eles usam o cérebro!”). Minha primeira reação é resultado de um complexo conjunto de crenças pré-conscientes que se encadeiam: negros são mais “corporais” que “cerebrais” – logo, negros não gostam de estudar – logo, negros estudam menos – logo, negros viram garis, que não precisam usar o cérebro.

A perversidade está em que acreditamos nisso tudo (tanto que lançamos a ameaça “se não estudar vai virar gari!” com toda a sinceridade) ao mesmo tempo em que temos plena e absoluta certeza de que nunca, jamais, sob nenhuma hipótese, um membro de nossa família branca e de classe média virará gari se repetir de ano.

As duas crenças pré-conscientes – da meritocracia e da superioridade intelectual intrínseca dos brancos – jamais entram em choque. Isso é ideologia. A ideologia é continuar acreditando na meritocracia mesmo quando a realidade dá incontáveis exemplos de gente que foi mal na escola e nem por isso virou gari –  gente de uma cor e de uma classe social bem específicas.

(A propósito, minha mãe repetiu de ano. Mais de uma vez. Virou professora de francês.)

Vale repetir que estou falando neste texto de crenças pré-conscientes – coisas nas quais acreditamos sem nem saber que acreditamos. É claro que todos sabemos que a capacidade intelectual nada tem a ver com a cor da pele ou quaisquer outras características físicas. Jamais afirmaríamos o contrário. Estamos perfeitamente cientes de que não faz sentido associar inteligência e raça. Mas estou falando aqui justamente de coisas das quais não estamos cientes. De dados e informações que contextualizam nossa visão de mundo sem nos darmos conta. Dados, sensações, percepções que compõem o pano de fundo sobre o qual o mundo se destaca. Já imaginou a bagunça que nossa vida seria, pergunta Merleau-Ponty, se conseguíssemos ver, como coisas, os intervalos entre as coisas?

***

Formatura de um curso de elite de uma faculdade particular idem em São Paulo.

Estava tudo muito bom e muito bonito – muita alegria e muita justa comemoração, muita caipiroska de fruta e muito sertanejo universitário animando os formandos e seus convidados.

Então, faço o seguinte comentário:

– Duzentos e tantos formandos. Nenhum negro – e tomo mais um gole da minha caipiroska.

Nesse momento, eu vi, nos olhos do meu marido, o intervalo-entre-as-coisas tornar-se coisa.

***

Nossas crianças de classe média aprendem, em sala de aula, que inteligência não se mede pela cor da pele. Aprendem direitinho, com professores de história e biologia.

Professores brancos.

Aí vem a hora do recreio e faxineiros recolhem os restos dos lanches de nossas crianças.

Faxineiros negros.

O que nossas crianças realmente aprendem? 

***

Como des(cons)truir nossa crença pré-consciente de que, no-fundo-no-fundo, brancos são inteligentes e negros são burros?

Eu tenho um palpite. Não se des(cons)trói uma crença pré-consciente argumentando que, veja bem, tal crença é um absurdo, não faz sentido, está errada. Afinal, isso já sabemos.

Uma crença desse tipo só é des(cons)truída quando se coloca outra em seu lugar. Outras crenças, outros valores – para competir com as crenças e valores já arraigados.

É perfeitamente possível. É o que faz a carta dos garis. Garis que se organizam e escrevem um texto contundente e imprescindível. 

***

Por fim, é preciso sempre lembrar que os garis não escreveram a carta para educar a nós, pobres-de-nós que temos crenças tão infelizes arraigadas. Porque se encararmos a carta exclusivamente como um instrumento educativo para nós-que-somos-racistas-apesar-de-não-querer, este vira um post-Riachuelo: mãos negras, mais uma vez, servindo ao bem-estar – no caso, à aprendizagem – dos brancos.

É preciso insistir e reforçar: os garis escreveram a carta porque – barata no pão; leite estragado; oitocentos míseros reais.

E aí, caro leitor-herói que chegou até aqui, a questão é infinitamente mais simples do que as complexas reflexões sobre crenças pré-conscientes que tentei desenvolver.

A questão é se você acha que uma pessoa que recebe: 1) barata no pão; 2) leite estragado; 3) oitocentos reais por mês deve se contentar com um reajuste de 9% e voltar feliz da vida para o trabalho.

Ou se você acha que esta pessoa deve continuar lutando.

#TodoApoioAosGaris

Um não-assalto

Estou no ônibus com o celular na mão. Assim como metade das pessoas que estão no ônibus. Estou no ônibus com o celular na mão e de repente, outra mão está no meu celular também. Puxando forte, forte, bem forte, sem dizer nada, apenas isso, apenas puxando, e eu puxando do outro lado, um cabo de guerra com um celular no meio, o ônibus parou no ponto, o dono da mão que puxava meu celular saiu correndo. 

Sem o celular.

Todos os clichês: “pega ladrão!” “foi tudo muito rápido”, “você não deveria ter reagido” “eu sei, mas a gente nunca sabe como vai reagir nessas horas”.

O cabo de guerra me deixou sentada no chão do ônibus, como uma cadelinha-do-rabo-pisado.

O moço sentado no banco ao lado continuou ouvindo sua música como se nada tivesse acontecido.

E, de fato, nada acontecera, não? Eu nem sequer fora assaltada.

Uma mulher me ajudou a levantar. (Obrigada, mulher.)

E as pessoas começaram a conversar.

– Eu vi ele entrando no ônibus, bem que achei ele esquisito.

– Ele tava me urubuzando, tava perto demais, aí fiz cara feia e ele mudou de vítima.

– Ele entrou comigo no ponto, era um moreninho de camisa azul, né?

– Azul não, vermelha. 

– Isso, azul ou vermelha.

A cobradora me perguntou qual a marca do meu celular porque os cobradores da região conhecem um pessoal da favela e certamente era para a favela que o ladrão teria fugido, e os cobradores ficariam muito contentes em tirar o meu celular da marca X das mãos do moreninho de camisa azul.

(Ou vermelha.)

Respondi que o celular ficou comigo. E que a camisa também podia ser branca, preta, verde-água, abajur-lilás.

Desci no meu ponto com um celular na bolsa, um hematoma na perna e uma dignidade de mentira no rosto.

Estava chovendo mas não abri o guarda-chuva.

Não vai ter Fla x Flu, vai ter Madureira x Olaria

Sabe quando você lê um texto, concorda com tudo, e fica com a estranha sensação de que não deveria ter concordado?

Aconteceu comigo hoje, com este texto. Por favor, leia-o – sem dúvida será uma experiência muito mais enriquecedora do que ler o resumo que farei dele a seguir.

O argumento do texto é basicamente o seguinte: enquanto alguns se incomodam com o chamado Fla x Flu eleitoral, o perigo mora mesmo é nos Milicos do Senhor F.C. (nome que, confesso, eu adoraria ter inventado), que se imiscuem no PT e no PSDB com suas ideias ultradireitistas e não têm coragem de fundar um partido próprio – e, por outro lado, nem PT e nem PSDB fizeram o favor de expulsá-los dos respectivos times até agora. Os Milicos do Senhor, socialmente conservadores (o que é apenas um termo bonito para designar racismo, homofobia etc.) e viúvos da ditadura, nada têm a ver com o que foram PT e PSDB em suas origens. O texto faz uso de uma metáfora biológica – o parasitismo – para descrever a relação entre os Milicos do Senhor e os dois grandes partidos. Os M do S seriam parasitas de PT e PSDB, que por sua vez se acomodaram na posição de hospedeiros. O texto, então, propõe que PT e PSDB rompam a aliança com o conservadorismo em respeito aos seus eleitores.

À parte uma nivelação um tanto quanto rasteira entre PT e PSDB, como se ambos fossem entidades simetricamente opostas (deslize que me parece completamente perdoável em um texto que não se propõe a tratar extensamente da história dos dois partidos), concordei com tudo após uma primeira leitura. Afinal, como não concordar? Tudo parece muito razoável e sensato. Qual eleitor do PT não preferiria que seu partido parasse de se engraçar com felicianos? Qual eleitor do PSDB não preferiria ver seu partido livre de coronéis telhada? Assim, teríamos um mundo ideal: haveria dois partidos razoáveis nos quais votar – um mais à esquerda, outro mais à direita –, livres dos malucos antigay e pró-ditadura. A eleição não seria motivo de angústia para ninguém.

O texto é mesmo um chamado à razão. Ele conclama os partidos, nobres (ou, no mínimo, não-podres) em suas origens, a parar de bater palma para urso ultradireitista dançar. “Podemos todos pôr a mão na consciência e separar o joio do trigo, por favor?” É isso o que o texto propõe, ao recomendar que PT e PSDB rejeitem os ultraconservadores.

Faz todo sentido, claro. É tudo muito racional.

Sabe o que mais é racional?

Legalizar as drogas e o aborto, por exemplo.

Se a política fosse baseada na racionalidade e no bem geral dos cidadãos, o comércio de drogas e a realização do aborto já teriam sido legalizados faz tempo, poupando milhares de vidas.

Para o bem e para o mal, a racionalidade não dá conta da política.

***

É claro que teríamos um ambiente político muito melhor se PT e PSDB fossem partidos políticos livres de energúmenos antigay e pró-ditadura. Infelizmente, não vai acontecer. Nem o PT deixará de fazer concessões à bancada evangélica, nem o PSDB expulsará o deputado da cura gay. E por quê? Porque PT e PSDB não são organismos parasitados que simplesmente se acomodaram aos parasitas e são coniventes com eles, sem dispor da energia necessária para expulsá-los. O parasitismo não é a metáfora mais adequada neste caso. Para continuar no campo da biologia, teremos de recorrer à metáfora do mutualismo, relação em que as duas espécies se beneficiam mutuamente.

A relação entre PT e PSDB de um lado e Milicos do Senhor de outro só se mantém e se sustenta porque é extremamente vantajosa para ambas as partes (embora, claro, não seja vantajosa nem para mim nem para você, que gostaríamos de votar em algum partido que preste). O PT não vai parar de se engraçar com felicianos porque essa aliança lhe traz benefícios – e da mesma forma o PSDB com seus telhadas. Naturalmente, a aliança com esses partidos também traz amplas vantagens para os ultradireitistas. Em suma, todo mundo ganha: só quem perde é o Brasil.

Essa doce fantasia de separar o joio do trigo é apenas isso: uma fantasia que não encontra estofo na realidade. É fácil apontar os abusos e absurdos de figuras caricatas como Feliciano, Telhada ou Paulo Maluf. É mais difícil reconhecer que os interesses de PT e PSDB convergem com os dessas figuras em inúmeros aspectos. PT e PSDB são hoje partidos conservadores, de direita. É claro que muita gente (a começar pelo Coronel Telhada) vai discordar que o PT seja um partido de direita. A essas pessoas que discordam (e que não são o Coronel Telhada), eu pergunto: se convocar o Exército para conter manifestações populares e defender uma bizarra lei antiterrorismo não são ações políticas de direita, o que exatamente significaria “ser de direita”? Por favor, contem para mim, que eu tenho sincera curiosidade em descobrir o que mais um partido político precisa fazer para ser considerado de direita.

Ao dizer que o PT é hoje um partido de direita, não estou com isso querendo dizer que PT e PSDB é tudo igual, tudo a mesma coisa, tudo a mesma porcaria, PT = PSDB = Hitler = Stálin, etc. Como diz uma amiga minha, tentemos maneirar na burrice. A realidade, já dizia Paulo Mendes Campos, é louca e convém não desprezar jamais sua complexidade. Acho que, hoje em dia, ninguém sabe mais do que o paulistano o quanto é falacioso o discurso do “é tudo a mesma coisa”. Votar no PT, na cidade de São Paulo, fez sim toda a diferença do mundo.

O que não dá – o que é ingênuo demais – é achar que PT e PSDB irão simplesmente botar a mão na consciência e expulsar seus respectivos Milicos do Senhor apenas porque seria a coisa mais razoável a se fazer.

A razão não dá conta da política.

Para sair da metáfora biológica e retomar a metáfora futebolística – sim, todos adoraríamos desfrutar do belo espetáculo de um Fla x Flu. Infelizmente, não vai rolar. O que vai rolar – porque já vem rolando há muito tempo – é um Madureira x Olaria.

Esperar um Fla x Flu é o puro creme da ingenuidade.

Minha academia poderia ser um lugar tão legal

Minha academia é como aquele moço que teria tudo para ser lindo, mas é indisfarçavelmente estrábico. Ou como aquela moça que teria tudo para ser de esquerda, mas insiste em ler o Paulo Henrique Amorim.

Assim é minha academia: teria tudo para ser um lugar sumamente agradável.

Ela está localizada em um bairro delicioso, arborizado, com a temperatura sempre um ou dois graus abaixo do que no bairro onde moro.

Como se esse frescor natural não bastasse, recentemente eles instalaram um ar-condicionado que transformou o ambiente praticamente na seção de congelados do Pão de Açúcar.

Existem cadeiras confortáveis lá, junto a mesas que parecem convidar a um lanchinho.

E por falar em lanchinho, às vezes eles dão bananas na saída.

(A propósito, não entendo por que é que apenas as academias tiveram a maravilhosa ideia de distribuir bananas na saída. Por mim, todo e qualquer estabelecimento deveria adotar essa prática. Biblioteca, pet shop, posto de gasolina – o cliente está indo embora? “Volte sempre, tome aqui uma banana.” Satisfação garantida a custo – literalmente – de banana.)

Há bebedouros com um suprimento infinito de água refrigerada.

O três-gê da Vivo pega bem.

E, de minha parte, sempre levo lindos disquinhos no aipode e ótimos livrinhos no quíndou quando vou lá.

Como se vê, um lugar que teria tudo para ser magnífico.

Minha academia tem um único defeito:

Os aparelhos de musculação e de ginástica.

Não fosse por eles, eu iria lá todos os dias.

Por que nos indignamos com os políticos corruptos mas não com as empresas corruptoras?

Tenho uma teoria de que as palavras que aprendemos durante a infância moldam nossa compreensão do mundo por muito mais tempo do que gostaríamos ou supomos.

De criança, por exemplo, aprendi que “corrupto” era o mesmo que ladrão – só que a gente chamava de “corruptos” os políticos, sendo os demais ladrões chamados apenas de ladrões mesmo. Para mim, “corrupção” era simplesmente “ladroagem”: assim como ladrões invadiam casas e roubavam tudo, da mesma forma agiam os políticos corruptos, que roubavam todas as riquezas do país. Meu conceito de corrupção era assim simples e puro: ninguém jamais me contou que, se havia um corrupto em algum lugar, haveria também um corruptor.

Além disso, aprendi que “corrupto” era um termo quase equivalente a “político” – na prática, as duas palavras podiam ser usadas intercambiavelmente. Compare: “os políticos gostam de aumentar os impostos” e “os corruptos gostam de aumentar os impostos”. Convenhamos, não há grande diferença entre a primeira e a segunda frase.

Para a menina que eu fui, o Brasil funcionava da seguinte forma: de um lado, havia os cidadãos produtivos, que trabalhavam, pagavam impostos, geravam riqueza e contribuíam com a sociedade de alguma forma. Do outro, os políticos corruptos que apenas se aproveitavam do trabalho dos outros, através da cobrança de impostos e da corrupção. Todos os cidadãos – desde o operário do chão-de-fábrica até o presidente da empresa – eram, em alguma medida, explorados pelos políticos corruptos. Pensando bem, era praticamente uma visão marxista do país: bastaria substituir “capitalistas” por “políticos” e “proletariado” por “restante da população” para se ter uma ideia do Brasil em que eu acreditava.

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Então você vai me dizer que esta é a visão de mundo de uma criança de 7 anos, e que ninguém pensa assim depois de adulto. Todo adulto, inclusive, já ouviu falar na lenda urbana do político honesto, aquele que continua morando em uma casinha simples depois de anos de vida pública (se bem que esse critério da casinha ficou um pouco ultrapassado depois que um político que morou a vida inteira num sobradinho do Butantã foi preso justamente por corrupção). Nós, adultos, somos espertos e sabemos que o mundo é mais complexo do que essa trama de novelinha das sete em que tudo se resume a polícia x ladrão, político x cidadão!…

Será que sabemos mesmo?

Se realmente estamos cientes de que políticos são corrompidos por megacorporações que pagam generosas propinas para maximizar seus lucros, eu gostaria de saber onde é que estão os posts no Feissy denunciando o SIEMENSalão. Onde estão os brados indignados com os ALSTrOMbadinhas. Tá certo que meus trocadilhos são horríveis, mas por que as mesmas mentes brilhantes que cunharam os epítetos “petralha” e “tucanalha” não fazem coisa parecida com a OGX e a Odebrecht? Por que pedimos o impeachment do Alckmin mas achamos natural que a Siemens, uma empresa declaradamente picareta, ainda mantenha contratos com o estado de São Paulo?

A verdade é que empresa não vira meme. Ninguém se dispõe a inventar xingamentos engraçadinhos com grandes corporações. A figura do político safado é imensamente mais popular e odiosa que a do empresário safado. Aliás, sugiro guglar as duas expressões: enquanto “político safado” é Maluf ou Sarney, “empresário safado” é tara sexual.

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Por falar no Doutor Paulo, parece-me que aplicamos uma de suas máximas às empresas de modo geral: “roubam mas fazem”. Empresas podem até cometer ilegalidades, mas, no final do dia, produzem coisas e geram empregos. Já os políticos, ninguém sabe direito o que fazem – eles apenas roubam, sem produzir nada que compense os danos infligidos à sociedade.

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O político safado é uma figura que amamos odiar porque ele representa um problema incrivelmente fácil de resolver. Basta que eles sejam substituídos – seja por derrota nas urnas, impeachment ou morte – para que, um dia – quando o mundo for dominado pelos bons e puros de coração –, tudo se resolva. Enquanto isso não acontece, a gente xinga bastante no tuíter, torce pela morte do Sarney e desopila o fígado – e repete tudo igualzinho no dia seguinte. 

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O problema de questionar a conduta das empresas corruptoras é que, uma vez que você começa, é impossível parar – e é impossível repetir tudo igualzinho no dia seguinte. Porque, num primeiro momento, você fica indignado com a Siemens e inventa trocadilhos infames. Depois, questiona se existem leis capazes de coibir crimes como os praticados por esta empresa. Então, questiona se existe alguma possibilidade de ética empresarial para além da ética do lucro. Enfim, questiona como seria viver em um mundo em que o bem público fosse um valor mais importante que os bens privados.

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Não acho errado nem ingênuo protestar contra políticos corruptos, muito pelo contrário. Longe de mim achar que devemos aliviar com partido algum – como, aliás, já acontece com o PSDB. Não é novidade para ninguém que, mesmo estando no centro de um escândalo muito mais grave do ponto de vista dos danos para o patrimônio público do que o mensalão, o PSDB continua pagando de partido honesto e bonzinho para gente que enche a boca para criticar (frequentemente com razão) o PT.

Acho apenas que não faria mal se, para cada xingamento de petralha, tucanalha ou equivalente que proferíssemos, nos obrigássemos a passar pelo menos uma hora pesquisando o papel da iniciativa privada nas mutretas em que os ditos petralhas ou tucanalhas estão envolvidos. 

Quem sabe assim conseguiremos debater não como crianças de 7 anos de idade, mas como crianças de 7 anos e meio. Já seria um grande avanço.

O casamento da prima

Era o casamento da minha prima, ao qual compareci emburrada porque tive de faltar ao acampamento da escola. Se, na época, eu fosse mais ligada na conversa dos adultos, poderia ter argumentado para os meus pais que não faria sentido cancelar um compromisso para celebrar um casamento fadado a durar menos de um ano – mas quem queria saber da droga da conversa dos adultos quando meus devaneios eram preenchidos pela expectativa do bailinho do acampamento, quando meu namorado me tiraria para dançar?

(S. era meu namorado há um ano – mais do que viria a durar o casamento de minha prima, portanto –, mas ele nunca sequer pegara minha mão. O acampamento teria, além do bailinho, outras duas excelentes oportunidades de pegação de mão – gincana noturna e gato-mia – e eu não estava nem um pouco disposta a desperdiçá-las.)

Dada minha insuficiente capacidade argumentativa, porém, só me restou ir ao casamento da prima. Mamãe fez o que sabia fazer melhor – ser minha mãe – e caprichou na chantagem emocional, enfatizando que minha prima ficaria muito triste caso eu não comparecesse ao evento mais importante de sua vida – e me consolou dizendo que S. haveria de pegar minha mão logo mais, era só eu ter um pouquinho de paciência.

(Desnecessário dizer que meu relacionamento com S. terminou pouco depois – sem que ele jamais tivesse pego minha mão.)

A parte da igreja foi meio chata, principalmente porque os adultos brigaram comigo quando perguntei bem alto “ué, mas cadê a barriga da prima?” Acontece que a prima estava grávida de quatro meses e bem barriguda, mas justo naquele dia o vestido que ela usava escondia magicamente o redondo da barriga. Então os adultos me explicaram que era assim mesmo: que, para casar, a mulher não podia ter barriga nenhuma, e por isso ela estava escondendo a dela, que se o padre visse qualquer redondinho na barriga não haveria casamento algum.

(Suponho ser esta a origem de minha perene insatisfação com minha própria barriga, que insiste em exibir um redondinho por mais que eu tente escondê-lo atrás de vestidos mágicos.)

Mas a parte da festa – que foi quando descobri que os adultos também faziam seus bailinhos – até que foi legal. Meus pais beberam e fumaram um cigarro mais fedido que o Free de todos os dias, e poucas vezes os vi tão alegres.

Alegre mesmo, porém, estava um amigão de meu pai, que além de beber e fumar e dançar ainda corria pelo salão e cantava bem alto, sempre a mesma música. No bailinho dos adultos tocava Madonna e Michael Jackson, mas o amigão do meu pai não parecia se importar muito: volta e meia ele gritava mamãe-eu-quero-mamar, apesar de que não era carnaval e de que, cá entre nós, ele já era bem grandinho.

Mas não era só isso. Entre uma música e outra, ele se abaixava até minha altura, segurava meu rosto entre as mãos e dizia:

– Mas você é uma menina muito especial mesmo, hein! Que menina especial que você é! Meus parabéns, viu!

E voltava a rodopiar pelo salão, pedindo chupeta para o bebê não chorar.

Assim foi a noite toda. Não vou dizer que não me senti lisonjeada com a atenção, mas fiquei sobretudo curiosa: como ele descobrira que eu era tão especial? Será que ele sabia que eu fora a oradora da turma na formatura do Jardim 5? Que eu sabia cantar todas as músicas do filme da Turma da Mônica com a Tetê Espíndola? Que eu era craque no pebolim? E que eu já tinha até um namorado?

A festa, que estava legal, começou a ficar aflitiva porque eu não via a hora de conversar com meus pais a sós para esclarecer aquele mistério: como é que aquele moço sabia tantas coisas a meu respeito?

Enfim, o momento tão esperado chegou. Assim que entramos no carro, comecei:

– Animado o seu amigo, né, papai.

Meu pai riu e comentou com minha mãe que até eu tinha reparado o quanto o sujeito estava alegre.

– Sabia que ele me disse que sou muito especial?

Meu pai não sabia.

– Papai, por que ele disse que sou muito especial?

A resposta de meu pai foi daquelas para não esquecer:

– Porque ele estava bêbado, filha.

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Às vezes, ainda hoje, acontece de alguém segurar meu rosto entre as mãos e dizer, em arroubos de entusiasmo, que sou muito, muito especial.

Felizmente, meu pai já me explicou há muito tempo que, quando o entusiasmo é grande demais, não sou eu que sou especial.

Especiais mesmo são a bebida, o cigarro e o bailinho.

Uma condição necessária para que não sejamos escrotos

Não acho que a empatia seja algum tipo de emplastro do Brás Cubas capaz de curar todos os males. Acredito inclusive que, dado que empatia nada mais é que assimilar a experiência alheia à experiência própria, no limite isso significa reduzir o outro ao eu – o que, convenhamos, não é exatamente uma boa ideia. Além disso, uma hipotética sociedade que só se deixa mover pela empatia e não consegue pensar em termos frios e abstratos conseguirá arrecadar milhares de reais para pagar o tratamento médico do Zezinho, um garotinho pobre e doente – mas, quando confrontada com a impessoalidade dos números do sistema de saúde, essa mesma nem-tão-hipotética-assim sociedade chiará contra o aumento de impostos que poderiam ajudar centenas e milhares de Zezinhos, apenas porque “10% a mais de imposto para a saúde” é algo abstrato demais, distante demais dos nossos corações e muito menos tocante do que o rostinho sofrido do Zezinho. Nossa revolta com o aumento do IPTU, digo, com o aumento do imposto para a saúde, não se deve ao fato de termos experiência em Brasil e sabermos que o dinheiro dos impostos provavelmente irá para o bolso de políticos safados – pois, até aí, como garantir que o dinheiro pró-Zezinho realmente chegará no Zezinho e não será surrupiado por, sei lá, seu tio espertalhão? A revolta é porque desconhecemos – ou preferimos desconhecer – os meandros do processo pelo qual o dinheiro do imposto é transformado em remédio, leito e médico pro Zezinho.

A verdade é que é muito mais fácil comover-se com alguma coisa quando se põe um rosto no sofrimento. Não é por outra razão que 1) se você quer que um carro lhe dê passagem no trânsito, convém capturar o olhar do motorista. O motorista que não dá passagem é o motorista que ignora que atrás do volante também bate um coração. Se o motorista olha no seu olho, ele geralmente fica constrangido demais para ignorar a sua buzinadinha; 2) entrevistas com pensadores notadamente obscuros costumam ser muito mais facilmente compreensíveis que seus textos teóricos – e não porque nas entrevistas esses pensadores falem em vez de escrever, mas porque nas entrevistas eles estão diante de um rosto, frequentemente um rosto de espanto, e é difícil falar academicices horas a fio quando se tem diante de si um rosto angustiado de quem não está entendendo nada.

Mas, como todos sabemos, 1) existem motoristas que, olhando no fundo do seu olho, dão uma risadinha e não dão passagem; 2) existem pensadores que soam tão crípticos em suas entrevistas como em qualquer artigo acadêmico; 3) existem pessoas incapazes de perceber o quanto certas palavras são extremamente desrespeitosas, quando bastaria se colocar no lugar do outro para sentir o desrespeito na pele.

Como você se sentiria se todos os jornais e colunas de fofoca do país insinuassem – ou mesmo declarassem abertamente – que você é um homem de mentirinha? Ou que você não é realmente uma mulher?

Às vezes, afirmar o óbvio é necessário: esta moça é uma pessoa. Tão pessoa quanto o Zezinho, sabe?

Por que será que é tão difícil assim se colocar no lugar dela?

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Não, a empatia não irá salvar o mundo. Ela não é condição suficiente para resolvermos os problemas estruturais da sociedade.

Mas, porra, é uma condição necessária para que não sejamos escrotos.