Last Dance – Keith Jarrett & Charlie Haden

Este é o segundo disco que sai de uma mesma sessão de gravação: uns anos atrás, Keith Jarrett chamou Chalie Haden para gravar uma batelada de standards em seu estúdio caseiro, e as horas de gravação renderam Jasmine, de 2010, que não me empolgou muito, e Last Dance, lançado há poucos dias, que foi paixão à primeira audição. Estava aqui pensando por que a primeira seleção de músicas não me disse muita coisa e a segunda foi frexada no coração ao primeiro acorde, e a resposta me parece bem simples: o repertório. Com exceção de For All We Know e Body and Soul, eu não conhecia direito (ou não conhecia, ponto) as músicas de Jasmine, enquanto que em Last Dance quase todas são canções eu sei de cor. E acho que esse é um disco tão íntimo, acolhedor, familiar, que conhecer as canções faz toda a diferença: é a diferença de, no primeiro disco, sentir-se uma mosquinha intrusa na sala de gravação e, no segundo, uma pessoa da família que foi convidada a entrar na sala e se esparramar no sofá enquanto a música acontece.

E como acontece. Last Dance é um disco de velhos que graças a deus não precisam provar para a mãe ou a namorada que sabem tocar seus instrumentos. É um disco relaxado, despretensioso, em que a beleza está nos detalhes, como na incrível capacidade do Charlie Haden de soltar cada um de seus buuuums no momento preciso, e nas músicas em que Keith Jarrett se atém por mais de dois compassos à melodia da partitura. É lindo o ‘Round Midnight que eles fazem, em que a melodia custa a aparecer, mas neste disco gosto mais ainda (por ser mais incomum) quando Keith Jarrett sai tocando como se estivesse lendo a melodia diretamente do Real Book, porque aí cada pequena inflexão dinâmica, cada pequena notinha que ele atrasa ou adianta, ganha imensamente em expressividade e força. Neste ponto, em muitos momentos o disco me lembrou o disco de piano solo The Melody at Night, With You, também gravado em casa, em que ele estava reaprendendo a tocar piano e o resultado é de uma simplicidade pungente. Em Last Dance também tudo é muito simples – e, claro, nada é fácil. É difícil pensar em outros dois músicos desse nível dispostos a gravar um disco tão isento de exibicionismos.

E então, claro, tem a improvisação, tem a graça dos grunhidos do Keith Jarrett, tem a surpresa dele próprio com o que vai encontrando pelo caminho. Eu traduziria muitos desses grunhidos como “uia, olha só o que eu achei aqui”, e acho de uma generosidade comovente que esses momentos espontâneos de pura surpresa sejam compartilhados conosco.

O jazz, para mim, é uma música da generosidade. Em primeiro lugar, porque a música só acontece quando um músico tem a generosidade de ouvir o outro. Em segundo, porque os músicos precisam ter a generosidade de compartilhar com o ouvinte um processo criativo que pode ser cheio de hesitações, de problemas, de ruídos (de grunhidos).

Tem esses sites que permitem aos músicos recolher contribuições dos fãs para financiar seus próprios discos. Na maioria deles, pagando pelo disco que será gravado, você também ganha acesso aos “bastidores”, por assim dizer: videozinhos mostrando os ensaios, entrevistas com os músicos, etc. Vende-se a ideia de que, nesses projetos, você ganha não só o produto como também o processo de criação de produto. Pois bem: minha sensação é de que, no jazz, o processo é o próprio produto. Longa vida aos videozinhos de bastidores, claro, mas o processo que realmente importa estará no disco. A essência do jazz, para mim, é essa colaboração generosa entre os músicos – e destes com os ouvintes.

Keith Jarrett e Charlie Haden sabem colaborar.

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